conceito
Arte - Alfred Gell

O antropólogo britânico Alfred Gell (1945-1997) desenvolve seu conceito de arte como parte de sua proposta de estabelecimento de uma nova antropologia da arte. Responsável por uma rotação de perspectivas nesse domínio, Gell revisa conceitos como obra de arte, artefato, tecnologia da arte, estética, encantamento, magia e estilo, o que resulta em uma complexa teoria sobre a agência do objeto artístico.

No artigo “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia (1992), o autor considera as diversas artes como partes de um vasto e frequentemente não reconhecido sistema técnico, que ele denomina “tecnologia do encanto”. Nessa perspectiva, objetos de arte seriam fruto de uma atividade técnica de transubstanciação engenhosa de materiais e das ideias a eles associados. Gell reivindica aí o emprego de um “filisteíismo metodológico”, postura de total indiferença do antropólogo no tocante ao valor estético das obras de arte. Para elucidá-la, utiliza como exemplo objetos de arte criados com a intenção de funcionar como “armas”  em uma “guerra psicológica”; é o caso das tábuas que ornam as proas das canoas dos participantes do kula, sistema de trocas realizado pelas populações das ilhas Trobriand. A intenção por trás do uso dessas tábuas é fazer com que os parceiros da troca que estão em outras ilhas, ao observarem as canoas chegando, se deslumbrem a ponto de perderem os sentidos, oferecendo braceletes e colares mais valiosos do que de costume. A eficácia dos objetos de arte como componentes da tecnologia do encanto e o poder de fascinação que exercem são resultantes do encanto da tecnologia empregados em sua construção. Gell prioriza, assim, a análise da eficácia do objeto de arte, seu poder de agência.

Tábua de proa de canoa, Baía Milne, Massim, Papua-Nova Guiné, Museu de Arte de HonoluluNo artigo On Coote's ‘Marvels of everyday vision’” (1995), por sua vez, Gell realiza uma crítica à posição defendida pelo antropólogo britânico Jeremy Coote de que haveria sociedades que, mesmo sem produzir arte, possuiriam um conceito de estética. Coote utiliza como exemplo o conjunto de categorizações de cores, formas e padrões produzidos pelos Dinka do Sudão a partir das manchas e da coloração do gado, e que são projetadas na classificação de tudo aquilo que tange sua visualidade no dia a dia. A objeção de Gell a essas teses, que defendem a existência de uma estética Dinka, se volta ao pressuposto de que obras de arte não devem ser reduzidas a artefatos, podendo também englobar vegetais, seres animados, pinturas corporais e tatuagens, entre outros. A própria forma como os Dinka criam e enfeitam alguns de seus bois, enaltecendo e cultuando suas qualidades e atributos por meio de poemas e canções os convertem, para o autor, em objetos de arte. Para ele, razões estéticas (como a de “beleza”) são indissociáveis de razões práticas (como a de auferir “prestígio”). Em suma, sua crítica à posição de Coote reside em mostrar que não existe uma antropologia da estética que não seja também uma antropologia da arte, ou mais precisamente, uma antropologia dos objetos de arte. Também no ensaio “A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas (1996), Gell advoga o abandono da noção de estética pela antropologia da arte – que almeja desfazer distinções correntes entre obras de arte e “meros” artefatos – analisando a presença de uma rede de caça tradicional Zande em uma exposição de arte contemporânea. Se, ao veicularem significados, as obras de arte encarnam intencionalidades complexas, também os instrumentos, ao evocarem os nexos sociais de sua produção e uso, seriam candidatos potenciais à adjetivação de obras de arte.

Essas teses sobre o objeto artístico, desenvolvidas em uma série de artigos e intervenções do autor em debates acadêmicos, desembocarão no seu mais conhecido (e inacabado) livro sobre o tema, Arte e agência: uma teoria antropológica ([1998] 2018). Lançada postumamente, a obra contém a proposta de uma metodologia para a antropologia da arte. Gell inova ao afirmar, na contra-corrente, que a arte seria menos um suporte de comunicação de sentidos simbólicos, que um sistema de ação e de mediação de relações sociais. Ao rejeitar definições sociológico-institucionais, estéticas e semióticas do objeto artístico – agora renomeado como “índice” – o autor propõe uma definição teórica, com ênfase nos seus processos de agência, intenção, causação, resultado e transformação.

O conceito de arte que Gell delineia ao longo de sua obra tornou-se uma referência incontornável para os estudos de antropologia da arte, devido às suas críticas aos limites das abordagens estética (oriunda da filosofia), institucional (da sociologia), interpretativa (da própria antropologia) e das aproximações de cunho mais historicista ou formalista (polarizadas entre os campos da história e da crítica de arte). Em diversos contextos etnográficos – que vão desde as terras altas da Papua-Nova Guiné, passando pela Oceania, Sul da Ásia, Índia e chegando até as terras baixas da Amazônia – as formulações de Alfred Gell permitiram que diversos antropólogos, impactados pelas possibilidades teóricas abertas pelo autor, não mais dissociassem a produção e a circulação de objetos de arte de suas propriedades de agência e de sua relação com tópicos de interesse da antropologia que vão além do campo de estudo da arte.

Como citar este verbete:
MENEZES, Hélio & HUPSEL, Rafael. 2015. "Arte - Alfred Gell". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell>

ISSN: 2676-038X (online)

[ Acesse aqui a versão em PDF ]

a
data de publicação
08/12/2015
autoria

Hélio Menezes e Rafael Hupsel

bibliografia

BOWDEN, Ross, “A Critique of Alfred Gell on Art and Agency”, Oceania Vol. 74, No. 4, 2004, p. 309-324

CHUA, Liana & ELLIOT, Mark (eds.), Distributed Objects: Meaning and Mattering after Alfred Gell, London & New York, Berghahn Books, 2013

COOTE, Jeremy & MORPHY, Howard. "Aesthetics is a cross-cultural category, presentations for the motion". In: INGOLD, Tim (ed.), Key Debates in Anthropology, London, Routledge, 1994, p. 249-294

COOTE, Jeremy & SHELTON, Anthony, Anthropology, Art and Aesthetics, Oxford, Clarendon Press, 1992

GELL, Alfred, “The technology of enchantment and the enchantment of technology” In: J. Coote & A. Shelton, Anthropology, Art and Aesthetics. Oxford, Clarendon Press, 1992

GELL, Alfred, Wrapping in Images: Tatooing in Polynesia, Oxford, Clarendon Press, 1993

GELL, Alfred, “On Coote's 'Marvels of Everyday Vision’” In: J. F. Weiner (ed.), Too Many Meanings: A Critique of the Anthropology of Aesthetics, special issue, Social Analysis, n. 38, 1995

GELL, Alfred, “Vogel's net: traps as artworks and artworks as traps” In: A. Gell, The Art of Anthropology (essays and diagrams), London, The Athlone Press, 1996

GELL, Alfred, Art and agency, Oxford, Clarendon Press, 1998 (Trad. Bras. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Ubu Editora, 2018).

GELL, Alfred, The Art of Anthropology (essays and diagrams), London, The Athlone Press, 2001

HIRSCH, Eric, “Alfred Gell (1945–1997)”, American Anthropologist, 101, 1999, p.  152-5

LAYTON, Robert, The anthropology of art. Nova York, Columbia University Press, 1981

MORPHY, Howard & PERKINS, Morgan, The anthropology of art - a reader,  Oxford, Blackwell, 2006

MORPHY, Howard, “Art as a Mode of Action”. Journal of Material Culture, vol. 14, no. 1, 5-27 (Trad. Bras. Guilherme Ramos Cardoso). PROA: Revista de Antropologia e Arte, v. 1, n. 3, 2011/2012. Disponível em: http://www.revistaproa.com.br/03/?page_id=125 )

PINNEY, Christopher & THOMAS, Nicholas (eds.), Beyond Aesthetics (art and the technologies of enchantment), Oxford, Berg, 2001