obra
Introdução a African systems of kinship and marriage

O grande esforço comparativo em torno das sociedades africanas no qual parece culminar o chamado estrutural-funcionalismo britânico encontra-se resumido, no que diz respeito ao estudo do parentesco, em dois textos clássicos: um é o artigo de síntese e crítica escrito por Meyer Fortes (1906-1983), The structure of unilineal descent groups, de 1953; o outro é esta Introdução de Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) ao African systems of kinship and marriage, volume editado por ele e por Daryll Forde (1902-1973), e publicado com apoio da UNESCO em 1950. Trata-se, no dizer Lévi-Strauss (1908-2009), de um “verdadeiro ‘tratado”, que serve, a uma só vez, como introdução ao estudo do parentesco em geral, em especial do parentesco africano, e como uma espécie de súmula das proposições teóricas do antropólogo inglês, que só viveria por mais cinco anos. De fato, à exceção da coletânea Estrutura e na sociedade primitiva (1952), esta seria sua última grande publicação.

Nessa Introdução, Radcliffe-Brown retoma algumas questões clássicas que, por exemplo, haviam oposto Lewis H. Morgan (1818-1881) e John F. Mc Lennan (1827-1881), tais como a relação entre terminologia de parentesco e conduta social, e a distinção entre sistemas descritivos e classificatórios. A terminologia classificatória, em particular, aparece aqui como dispositivo conceitual que permite aos agentes lidar com um número elevado de relações – ideia que ele encontra em Henry S. Maine (1822-1888). É notável, além disso, que os mesmos princípios nos quais Radcliffe-Brown havia buscado decompor os chamados sistemas crow-omaha (no artigo de 1941, Introduction to the study of kinship, republicado na coletânea de 1952), sejam aí extraídos dos dados africanos: o princípio da unidade do grupo de siblings [irmãos], o princípio da unidade do grupo de linhagem e os princípios das relações entre gerações. Assim, tipos distintos de sistema acabam se mostrando passíveis de um mesmo tipo de análise. O mesmo se verifica através da extensa referência feita, usando esses mesmos princípios, a certos momentos do passado ocidental – em especial ao direito romano e ao antigo direito anglo-saxão, analisados em um recorte sincrônico – com o interessante efeito suplementar (dado o contexto inequivocamente colonialista da publicação) de pôr em perspectiva a prática adquirida do Ocidente moderno.

Como se define aí o parentesco? Há, por um lado, uma definição “egocentrada” que, conforme mostra Louis Dumont (1911-1998), parte da circunscrição própria da língua inglesa de kinship à consanguinidade, de modo que kin acaba remetendo à noção de descendência, seja de modo direto (como entre pai e filho) ou indireto (como entre irmãos); por outro lado, há uma definição mais geral, “sociocentrada”, que enuncia o sistema de parentesco como rede de relações sociais e como parte de uma rede maior, ou seja, a estrutura social do grupo, em determinado espaço de tempo. Esta delimitação temporal, enunciada no início do livro de 1952, não exclui a possibilidade de alteração: no mínimo desde sua antiga polêmica contra A.L. Kroeber (1876-1960) nos anos 1930, Radcliffe-Brown busca introduzir tal possibilidade no modelo teórico em termos da oposição entre estabilidade e instabilidade, como fica claro no artigo Kinship terminologies in California (1935).  Daí resulta a posição complexa do casamento. Trata-se, para Radcliffe-Brown, de algo da mesma ordem que o nascimento e a morte, ou seja: mais um caso de ruptura e reorganização (rearrangement) da estrutura social, o que não deixa dúvidas de que é como realidades essencialmente sociológicas que todos esses fenômenos são aí predominantemente tratados. Além disso, o casamento deve ser compreendido como um processo em várias etapas que se desenvolvem no tempo e, particularmente no contexto africano, recobra relevo seu caráter de pacto entre famílias, como parte de uma sequência de prestações. Menciona-se, por isso, o clássico Ensaio sobre a dádiva (1923-24) de Marcel Mauss (1872-1950) e fala-se mesmo na reiteração de alianças, sem que se esboce, entretanto, uma teoria dos regimes de troca, como a que Lévi-Strauss acabara de apresentar em As estruturas elementares do parentesco (1949). Correspondentemente, e em curiosa tensão com o restante do trabalho, o que interessa a Radcliffe-Brown na proibição do incesto – cuja universalidade Lévi-Strauss buscava caracterizar e explicar sociologicamente nesse livro – é tão somente a reação emocional individual e de caráter supostamente inato que ela envolve, estando expressamente separada (com pequenas concessões) do problema da regulação do casamento, discordância sublinhada já em 1952 pelo antropólogo holandês J.P.B. Josselin de Jong.

Se a função do casamento, assim como da exogamia, é interpretada por Radcliffe-Brown em termos de integração social, há, nessa “Introdução”, uma passagem na qual é relatado um caso em que um casamento em grau desfavorecido (tendencialmente endogâmico) foi discutido e acordado entre os Nguni da África do Sul, tendo a fissão do grupo como operador lógico da solução (caso semelhante é relatado por Fortes no artigo mencionado acima). O caso é exemplar, pois sua discussão permite retrucar uma série de estereótipos acerca do autor e de seus modelos: não se ignoram opiniões ou conceitos nativos na elaboração teórica; não se supõe a homogeneidade absoluta de um grupo, tampouco sua estabilidade necessária; e o modelo proposto busca dar conta de distinções em níveis diversos, que são circunstancialmente acionadas pelos agentes segundo propósitos práticos específicos. Em uma palavra, pode-se dizer que se trata de uma perspectiva essencialmente dinâmica. É desse modo dinâmico que o tratamento da antropologia social como ciência natural, advogado por Radcliffe-Brown numa orientação de matriz durkheimiana (e apenas aparentemente estática), busca contribuir para a compreensão de um objeto fugidio e complexo, isto é, de sociedades que, como já assinalavam os editores do volume comparativo anterior – Sistemas políticos africanos (1940) – se encontravam em estado intenso de mudança. Se um deles, Evans-Pritchard (1902-1973), recusava a busca de leis sociológicas, tanto ele quanto Radcliffe-Brown e Fortes pareciam concordar em distinguir radicalmente o propósito de antropólogos e administradores, ao mesmo tempo em que indicavam (em tom às vezes crítico, mas geralmente ambíguo) a utilidade potencial do trabalho dos primeiros para os segundos.

© Forde, D. & Radcliffe-Brown, A, Oxford University Press, 1950, p. 295. Todos os direitos reservados.

O destino futuro da perspectiva comum aí esboçada se divide: no interior do campo africanista, ela permanece frutífera, como atesta o volume organizado por Meyer Fortes e Sheila Patterson (1975), que dá certa continuidade ao esforço comparativo, ainda que de modo menos sistemático, alternando os temas da política e do parentesco, tal como em um volume anterior editado por Fortes em 1949, dedicado ao próprio Radcliffe-Brown; de modo mais geral, porém, ela se vê imediatamente confrontada pelo estruturalismo lévi-straussiano que, apesar do reconhecimento que lhe dirige, lhe opõe, já em 1953 (num texto célebre retomado em Antropologia estrutural sob o título de "A noção de estrutura em etnologia"), uma noção diversa de estrutura social. A clivagem entre os tipos de antropologia defendidos pelos dois autores teria ainda uma longa história, caracterizando, como sugeriu recentemente o americanista Stephen Hugh-Jones (1945-), o próprio desenvolvimento interno da antropologia britânica.

Como citar este verbete:
VIDAL, Erick Nascimento & SIERRA, Eduardo. 2018. "Introdução a African systems of kinship and marriage". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/introducao-african-systems-kinship-and-marriage

ISSN: 2676-038X (online)

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I
data de publicação
11/12/2018
autoria

Erick Nascimento Vidal e Eduardo Sierra

bibliografia

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