David Rolfe Graeber (1961-2020) é um antropólogo norte-americano conhecido por suas contribuições à antropologia da política, da economia e também por seu esforço na definição de uma “antropologia anarquista”. Iniciando sua trajetória acadêmica a partir de questões caras à antropologia clássica, como as teorias do valor, do poder político e da história econômica, Graeber ampliou o escopo de seus debates conforme sua atuação em movimentos sociais se intensificava. Esse percurso o levaria a desenvolver críticas à administração e burocracia capitalistas, à exploração corporativa e ao lugar da dívida nas instituições sociais. Graeber conciliou sua trajetória acadêmica com o envolvimento em movimentos anticapitalistas, notadamente Occupy Wall Street, que vem à luz nos Estados Unidos a partir de setembro de 2011 e Extinction Rebellion, fundado no Reino Unido em 2018, assim como seu apoio ao Partido Trabalhista britânico.
Graeber concluiu sua graduação na Universidade do Estado de Nova York (SUNY) e prosseguiu os estudos na Universidade de Chicago. Sua pesquisa de doutorado, The disastrous ordeal of 1987: memory and violence in rural Madagascar (1996), é fruto de dois anos de trabalho etnográfico em Madagascar sob a orientação do antropólogo Marshall Sahlins (1930-2021). A tese articula antropologia e história de forma a apreender temas relacionados à dominação de ordem político-econômica que opunha descendentes da nobreza e de escravizados – dado que os interlocutores de Graeber não distinguiam os senhores de escravos pré-coloniais dos burocratas modernos.
Graeber empreendeu também discussões sobre a teoria do valor, em especial no livro Toward an anthropological theory of value: the false coin of our own dreams (2001). Na obra, que parte dos dois teóricos que inspiraram as discussões antropológicas sobre o tema, Karl Marx (1818-1883) e Marcel Mauss (1872-1950), são expostas duas perspectivas em disputa ao longo do século XX: certo economicismo que toma o valor como medida das vontades individuais e variações da discussão de Ferdinand de Saussure (1857-1913) sobre valor como diferença dotada de sentido. Graeber criticou tais abordagens por reservarem pouco espaço à ação criativa, propondo um entendimento do “valor” como a forma pela qual tais ações se tornam significativas para os atores aos serem inseridas num sistema social mais amplo, real ou imaginário.
Porém, é com Dívida: os primeiros 5000 Anos (2011) – livro que propõe um debate multidisciplinar entre antropologia, economia e história – que a obra de Graeber se populariza. Entre os argumentos do livro – como a centralidade da violência e do Estado na transição do caráter comunitário das economias humanas para a matematização dos débitos na sociedade de mercado – encontra-se a crítica à ideia, consagrada desde Adam Smith (1723-1790), de que a moeda surgiu para superar os conflitos decorrentes do escambo primitivo e que, só então, haveria surgido uma noção de crédito. Graeber argumenta que o crédito precedeu a moeda, tendo a dívida emergido como um conceito moral muito antes de ser um conceito econômico. A análise caracteriza a dívida como uma noção mais ideológica – pensando especificamente na ideologia liberal – do que relativa à organização social, mais superestrutural do que infraestrutural (nesse sentido, superável). É no cruzamento entre academia e ativismo que Graeber construiu sua defesa de uma “antropologia anarquista”, centrada na prática e livre de certa obsessão marxista pela teoria. Nessa linha, todo o diálogo de Graeber com a antropologia esteve matizado por questões caras às discussões anarquistas, dos escritos do revolucionário russo e geógrafo Peter Kropotkin (1842-1921) aos trabalhos etnográficos de James C. Scott (1936-).
Após se mudar para Londres, Graeber lecionaria no Goldsmith's College e, posteriormente, na London School of Economics. Sua produção nessa fase focaliza a crítica ao “feudalismo gerencial” e aos empregos ilógicos produzidos pela burocracia capitalista, tema do best seller Bullshit jobs: a theory (2018). Um de seus últimos trabalhos, a coletânea de ensaios On kings (2017), escrita em coautoria com Sahlins, recupera a discussão do antropólogo A. M. Hocart (1883-1939) sobre realeza e ritual em uma tentativa de reavivar esses dois grandes temas da antropologia.
A repercussão dos trabalhos de Graeber no Brasil seguiu tendência semelhante à sua popularização no resto do mundo, dentro e fora da academia. O escopo analítico de Dívida contribuiu para que o livro se tornasse um sucesso internacional, angariando críticas e elogios de várias áreas. Economistas e historiadores levantaram questões sobre a precisão dos materiais e interpretações, enquanto nos meios alinhados à economia heterodoxa o livro foi recebido como uma contribuição à linhagem de autores como J. M. Keynes (1883-1946) e Karl Polanyi (1886-1964). Com a entrada de trabalhos posteriores nas listas dos livros mais vendidos e nas colunas dos grandes jornais, as ideias do autor passaram a ter ampla circulação.
Como citar este verbete:
WINE, Allan. “David Graeber”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2021. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/david-graeber
ISSN: 2676-038X (online)
Allan Wine
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