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Michel Agier

O antropólogo francês Michel Agier (1953-), diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, é autor de vasta obra, baseada em pesquisas etnográficas realizadas em diversos países. Construiu um percurso acadêmico centrado na reflexão sobre temas como: conflitos étnicos contemporâneos; mobilidades socioespaciais urbanas; formas de racialização e governança humanitária internacional, todos decorrentes dos processos geopolíticos que, a partir do fim da Guerra Fria, estimularam o incremento das situações de fronteira e a forte urbanização dos modos de vida da população mundial. É herdeiro, tanto da chamada perspectiva “situacional” que caracterizou a abordagem de antropólogos como Max Gluckman (1911-1975) e James Clyde Mitchell (1918-1995) – integrantes da “Escola de Manchester” entre as décadas de 1940 e 1960 –, quanto da antropologia urbana francesa dos anos 1960 a 1980 – linhagem que reúne nomes como os de Georges Balandier (1920-2016), Colette Pétonnet (1929-2012), Gérard Althabe (1932-2004) e Marc Augé (1935-2023), orientador de sua tese de doutorado, intitulada Réseaux marchands, réseauxs sociaux. Les commerçants soudanais du quartier Zongo de Lomé (1982).

Desde a conclusão do doutorado na EHESS na área de estudos africanos – no qual analisa as relações responsáveis por assegurar a permanência simbólica do Zongo, bairro de estrangeiros muçulmanos Hauça, alvo de uma ação de despejo promovida pelo governo de Lomé, no Togo –, Agier dedicou-se a compreender os sentidos atribuídos ao espaço urbano. Tal interesse pelos movimentos étnicos e pelas lógicas urbanas estimulou-o a se direcionar da África, onde iniciou a carreira como etnógrafo, para o Brasil e a Colômbia, países nos quais viveria entre 1986 e 1999. No contexto latino-americano, desenvolveu reflexões sobre formas contemporâneas de etnicidade, em livros como Anthropologie du carnaval: la ville, la fête et l'Afrique à Bahia (2000), na edição brasileira revista e atualizada, Ilê Aiyê: a fábrica do mundo afro (2024), bem como sua proposta de uma “antropologia da cidade”, que o autor aprofunda em L’invention de la ville (1999), Esquisse d’une anthropologie de la ville (2009) (Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos, 2011) e Anthropologie de la ville (2015).

Michel Agier, Ilê Ayê: a fábrica do mundo afro, Ed. 34, 2024

De acordo com Agier, uma “antropologia da cidade” torna-se possível pelo fato da cidade corresponder a um universo heterogêneo, amplo e empiricamente inacessível como totalidade; tais condições a convertem numa espécie de “objeto virtual”, dependente dos sentidos atribuídos por outrem. Sua proposta busca, portanto, pensar a cidade em seu devir, ou seja, como uma forma decorrente das relações sociais, ao invés de tomá-la como categoria fixa e pré-existente à análise. A "antropologia da cidade" proposta por Agier sugere, assim, desestabilizar definições normativas (administrativas, estatísticas, urbanísticas), de modo a reconstruir os sentidos do urbano com base nas lógicas que emergem das práticas e representações dos próprios habitantes. Essa cidade, reconstituída pela etnografia – que ele denomina "cidade bis" – torna-se um recurso teórico-metodológico capaz de criar as condições necessárias para que formas não hegemônicas de produção do espaço (ou de “fazer cidade”, em suas palavras) ganhem concretude e legitimidade epistemológica.

Outro tema marcante em sua produção é a governança humanitária internacional e seus desdobramentos culturais e geopolíticos, que ele enfrentou por meio de pesquisas entre imigrantes e em campos de refugiados. Trabalhos individuais e coletivos como Gérer les indésirables. Des camps de réfugiés au gouvernement humanitaire (2008), Un monde de camps (2014), L’étranger qui vient. Repenser l’hospitalité (2018), Babels. Enquêtes sur la condition migrante (2022), La peur des autres. L’essai sur l’indesirabilité (2022) e Les migrants et nous. Éloge de Babel (2023) revelam o modo pelo qual o mundo global contemporâneo engendra a obsolescência do próprio Estado. Este, ao deixar de exercer as funções de cuidado e atenção, contribui para aumentar o medo do “ameaçador”, “estranho” ou “estrangeiro”; figuras que, como mostra o autor em Racisme et culture (2025), legitimam processos complexos de racialização. Em La condition cosmopolite: l'anthropologie à l'épreuve du piège identitaire (2013) (Migrações, descentramento e cosmopolitismo: uma antropologia das fronteiras, 2015), ele indica como o mundo atual mostra-se carente de uma “cosmopolítica”, capaz de produzir a regulamentação democrática de diretrizes que garantam o bem comum em nível global a ponto de estimular formas igualitárias de distribuição de riquezas e responsabilidades. A chamada globalização, segundo ele, impôs duas evidências aparentemente contrárias: a “translocalidade” generalizada e a multiplicação de muros; isso faz com que a mobilidade valorizada como marca de um mundo global seja alvo de policiamento e controle de fluxos, quando se trata de populações desprivilegiadas social e economicamente.

Ainda nesta obra, Michel Agier configura um projeto intelectual comprometido com o desejo de afirmar uma nova epistemologia do descentramento antropológico, cujo desafio consiste em superar o modelo clássico do “descentramento cultural”, ainda apegado a noções fixas de identidade e cultura. Sua reflexão sobre o modelo que nomeia de “descentramento epistemológico” sugere que, no contexto atual – no qual imagens, mensagens e saberes se globalizam pelo incremento das tecnologias de transportes, comunicações etc. – é necessária uma perspectiva que tome como horizonte não mais noções reificadas de culturas ou identidades, mas um sistema de trocas globais que coloca todos (ainda que, desigualmente) diante de um mesmo regime de mobilidades, e que faz do mundo o contexto de referência, independente do lugar onde estejamos.

Sua proposta de uma análise antropológica que parta das redes, ao invés das estruturas normativas supostamente “autênticas” ou “originais”, bem como dos “processos identitários”, ao invés das “identidades culturais” herdadas visa, neste sentido, desviar a antropologia das “armadilhas identitárias” e dessubstancializar os objetos de interesse antropológico, contestando fronteiras, por exemplo, como eu/outro ou local/global. O combate à herança culturalista e essencialista de certa matriz (étnica) da antropologia é uma marca de sua obra, que vem estimulando interlocuções intelectuais e parcerias institucionais no Brasil, como é possível constatar, por exemplo, pela quantidade significativa de traduções de seus trabalhos para a língua portuguesa.

Como citar este verbete:
ADERALDO, Guilhermo; ANDRADE, Jéssica de Souza. “Michel Agier”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/michel-agier

ISSN: 2676-038X (online)

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a
data de publicação
12/08/2025
autoria

Guilhermo Aderaldo e Jéssica de Souza Andrade

bibliografia

AGIER, Michel, Commerce et sociabilité. Les négociants soudanais du quartier Zongo de Lomé (Togo), Paris, Éditions de l'Office de la recherche scientifique et technique outre-mer, 1983

AGIER, Michel, L’invention de la ville: Banlieues, townshops, invasions et favelas, Paris, Ed. des Archives contemporaines, 1999

AGIER, Michel, Anthropologie du Carnaval: La Ville, la Fête et l'Afrique à Bahia, Paris, Ed. Parenthèses, 2000 (Trad. Bras. Mirella Botaro e Raquel Camargo, Ilê Ayê: a fábrica do mundo afro, ed. rev. e atualiza, ed. 34, 2024)

AGIER, Michel, La sagesse de l'ethnologue, Paris, PUF, 2004 (Trad. Bras. Maria Stela Torres B. Lameiras, Bruno César Cavalcanti, Encontros etnográficos: interação, contexto, comparação, Maceió, Edufal, São Paulo, Edunesp, 2015) 

AGIER, Michel, Esquisses d'une anthropologie de la ville : lieux, situations, mouvements, Louvain-la-Neuve, Academia-Bruylant, 2009 (Trad. Bras. Graça Índias Cordeiro, Antropologia da Cidade: Lugares, Situações, Movimentos, São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 2011)

AGIER, Michel, Gérer les indésirables : des camps de réfugiés au gouvernement humanitaire, Paris, Flammarion, 2008

AGIER, Michel, La condition cosmopolite. L'anthropologie à l'épreuve du piège identitaire, Paris, La Découverte, 2013 (Trad. Bras. Bruno César Cavalcanti, Maria Stela Torres B. Lameiras, Rachel Rocha de A. Barros, Migrações, descentramento e cosmopolitismo : uma antropologia das fronteiras, Maceió, Edufal, São Paulo, Ed. da Unesp, 2015)

AGIER, Michel, Anthropologie de la ville, Paris, PUF, 2015

AGIER, Michel, L'étranger qui vient: repenser l'hospitalité, Paris, Seuil, 2018

AGIER, Michel, La peur des autres. Essai sur l’indésirabilité, Paris, Éditions Payot & Rivages, 2022

AGIER, Michel, Les migrants et nous: éloge de Babel, Paris, CNRS éditions, 2023

AGIER, Michel, Racisme et culture: explorations transnationales, Paris, Éditions du Seuil, 2025

AGIER, Michel & LE COURANT, Stefan. Babels. Enquêtes sur la condition migrante, Paris, Éditions Points, 2022

AGIER, Michel & LECADET, Clara, Un monde de camps (2014), Paris, La Découverte, 2014

ALCÂNTARA, Maurício; TOJI, Simone; BERSANI, Ana Elisa; AGIER, Michel. "Do medo dos outros, da hospitalidade e da necessidade de uma cosmopolítica da vida em comum: uma entrevista com Michel Agier", Ponto Urbe, São Paulo, Brasil, v. 31, n. 1, p. 1–17, 2024. DOI: 10.4000/pontourbe.15263. Disponível em: https://revistas.usp.br/pontourbe/article/view/216947. Acesso em: 24 jul. 2025.

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