conceito
Performance - Victor Turner

O conceito de performance em Victor Turner (1920-1983) resulta da convergência entre as pesquisas antropológicas do autor sobre os rituais - considerados capazes de suspender o fluxo da vida cotidiana e de desestabilizar relações predeterminadas pela estrutura social -  e o seu interesse pelo teatro como fonte de conceitos e metáforas para entender a vida social. É buscando transpor o modelo de análise dos rituais em sociedades pré-industriais para sociedades em larga escala que Turner se volta para as performances culturais, que re-encenam modelos tradicionais de representação e dão lugar a uma criatividade que desestabiliza esses mesmos modelos. As performances têm, segundo ele, caráter “liminoide”: produzem situações que estão fora (ou entre) posições sociais determinadas, o que destaca sua potencialidade transformadora, seu poder de gerar tensões e reformulações em ordens estabelecidas. A consideração da performance como parte integrante da experiência – outra noção central – está na base das aproximações entre antropologia e teatro, estimuladas pela interlocução com Richard Schechner (1934-), e pelas influências de Erving Goffman (1922 – 1982) e de sua análise do mundo social a partir das imagens dramatúrgicas. É no diálogo com estes autores que o conceito de performance adquire proeminência na obra de Turner.

As primeiras reflexões do autor sobre performance encontram inspiração no modelo dos ritos de passagem de Arnold van Gennep (1873-1957), com a ajuda do qual Turner destaca de que modo a dimensão ritualística marca etapas e mudanças vividas coletivamente, como por exemplo a passagem da infância para a vida adulta. Todo rito é por ele concebido como “processo ritual”: se inicia pela suspensão de uma ordem estrutural, propõe uma crise dessa ordem e leva a um desfecho, que pode resultar em reagregação ou em cisão social. Tal proposta de análise pode ser encontrada em A floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu (1967), em que o autor aborda a experiência ritual a partir da noção de “liminaridade”, categoria central para a conexão entre as noções de ritual, drama social e performance. O modelo ritual presente na obra de 1967 e na de 1969, O processo ritual: estrutura e anti-estrutura, desdobra-se, posteriormente, no conceito de “drama social” (Dramas, campos e metáforas, 1974), quando o antropólogo atualiza categorias utilizadas em sua etnografia junto aos Ndembu para refletir sobre os dramas ocidentais contemporâneos. Os dramas sociais são definidos, como situações capazes de evidenciar o caráter dinâmico da estrutura social, moldados tanto pela experiência como pelos enquadramentos convencionais. A noção de performance, por sua vez, associa-se à de experiência; inspirando-se em Wilhelm Dilthey (1833-1911) e resgatando o sentido etimológico da palavra (“tentar aventurar-se; correr risco”), Turner mostra como a performance dá forma à experiência, uma vez que esta se constitui por fases que associam emoções mobilizadas no momento presente às memórias de experiências passadas, articulando-as e renovando-as. Esse encadeamento possibilita novas interpretações do mundo social, permitindo ao próprio sujeito e ao grupo assimilar aspectos da realidade e também do desconhecido, o que viabiliza transformações.

Edward Curtis, "A dança do eclipse" [Kwakiutl], 1910–1914. Gelatina/prata. The J. Paul Getty Museum, Los Angeles, 84.XM.638.27. Domínio público.

Nas sociedades pré-industriais, os rituais de passagem mobilizam todas as escalas do social, enquanto nas ocidentais o teatro, a dança e a música, por exemplo, são performances particulares. E se participar de uma performance é frequentemente associado ao entretenimento, tal participação pode alcançar dimensões de criatividade, reflexividade e suspensão temporária ao fluxo da vida ordinária.  De modo análogo aos rituais de passagem (fenômenos liminares), as artes ocidentais seriam ocorrências “liminoides” que, ainda que não cheguem a abalar a estrutura social, interrompem o curso do cotidiano, propiciando aos sujeitos distanciarem-se de papéis normativos, repensarem a estrutura social ou mesmo refazê-la. Compreendendo a vida social por seu caráter dinâmico, processual e contraditório, Turner aponta as situações de crise e conflito como reveladoras de aspectos fundamentais do mundo social. Nessa acepção, todas as modalidades de performance são entendidas como parte da realidade, revelando ainda o seu inacabamento, seu aspecto processual. A performance como rito mostra-se, assim, como um dos caminhos de análise das tensões da estrutura social e dos elementos anti-estruturais que ela contém; possibilita analisar as experiências “liminoides” e anti-estruturais, convidando a observar como se movimenta a vida em sociedade, evidenciando suas contradições e transformações estruturais.

Augusto Malta, "Grupo de homens fantasiados para o carnaval, As Marrequinhas", 1913. Gelatina/prata. Instituto Moreira Salles, Brasiliana Fotográfica.

Reverberações das formulações de Victor Turner sobre ritual e especificamente sobre performance podem ser encontradas em diversas partes do mundo e em distintas gerações, por exemplo nas reflexões de Richard Bauman (1940-) e Diana Tylor (1950-), nos Estados Unidos; nas de Jean-Marie Pradier (1939-), na França e nas de Paulo Raposo, em Portugal. No Brasil, é possível localizar ecos das inspirações do autor nas pesquisas de Roberto DaMatta (1936-), Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Zéca Ligeiro, no Rio de Janeiro; nas de John Dawsey e Regina Müller no interior do Napedra (Núcleo de Antropologia, performance e drama), em São Paulo; nas de Jean Langdon, em Santa Catarina, entre muitos outros. Isso sem esquecer o impacto de Turner fora da antropologia; ao enfocar os pontos de contato entre antropologia e teatro, ele propõe a antropologia da performance como um campo aberto, em processo e em constantes desdobramentos, indicando o alcance de um diálogo em que criação artística e conceitual não se desvinculam da realidade cotidiana.

Como citar este verbete:
BORGES, Laís Gomes. “Performance - Victor Turner”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2019. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/performance-victor-turner>

ISSN: 2676-038X (online)

[ Acesse aqui a versão em PDF ]

p
data de publicação
28/07/2019
autoria

Laís Gomes Borges

bibliografia

ARNAULT, Renan & ALCANTARA E SILVA, Victor, "Os ritos de passagem", Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/os-ritos-de-passagem>

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro, Maria, “Drama, ritual e performance”,  Sociologia & Antropologia, 3 (6), 2013, p. 411-440

DAWSEY, John C., “Victor Turner e a antropologia da experiência”, Cadernos de Campo, São Paulo, n.13,  2005, p. 163-176

DAWSEY, John C., “Turner, Benjamin e antropologia da performance: o lugar olhado (e ouvido) das coisas”,  Cadernos de Campo, São Paulo, 7 (2), 2006, p. 17-25

GOFFMAN, Erving. The presentation of self in everyday life, EUA, Anchor Books Edition, 1959 (Trad. Bras. Maria Célia Santos RaposoPetrópolis, Vozes, 2005, 13ª edição)

NOLETO, Rafael da Silva & ALVES, Yara de Cássia. "Liminaridade e communitas - Victor Turner", Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/liminaridade-e-communitas-victor-turner>

SCHECHNER, Richard,  “O que é performance?”,  Revista de teatro, crítica e estética, Rio de Janeiro, n.12, 2003, p. 25-50

SCHECHNER, Richard, “From ritual to theater and back: the efficacy entertainment brain In: Performance theory, London, Routledge, 1988

TURNER, Victor W. The ritual process: structure and anti-structure, Chicago, Aldine Publishing Co., 1969. (Trad. Bras. Nancy Campi de Castro. Petrópolis, Vozes, 2013)

TURNER. Victor W. The anthropology of ferformance, New York, PAJ Publications, 1988

TURNER, Victor W., Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, Ithaca, Cornell University Press, 1975

TURNER, Victor, The forest of symbols: aspects of ndembu ritual, Ithaca/Londres, Cornell University Press, 1967 (Trad. Bras. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2005)