Pode o Subalterno falar? é um dos textos mais debatidos da crítica literária e feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak (1942-). Nele, a autora busca mostrar, por meio de diversos questionamentos à noção de sujeito, como o intelectual ocidental tende a se tornar um agente transparente do conhecimento, ao criar representações dos sujeitos do Terceiro Mundo, que os produzem como um Outro subalterno. Enredado entre o imperialismo, que incita a violência epistêmica da lei e educação coloniais, e as elites nativas (cujos interesses se alinham aos dos colonizadores), o subalterno, ou a subalterna, na modulação de gênero, para Spivak, é um sujeito que não pode falar. O texto foi escrito entre 1982 e 1983 e publicado originalmente no periódico Wedge em 1985. Mas sua repercussão coincidiu com o seu relançamento na coletânea Marxism and the interpretation of culture, editado por Cary Nelson e Lawrence Grossberg, em 1988.
O artigo, de caráter ensaístico, é dividido em quatro partes, mas a crítica às representações do Terceiro Mundo, em especial do sul da Ásia, pelo Ocidente atravessa todo o volume. Spivak critica como alguns pensadores pós-estruturalistas, como os filósofos Michel Foucault (1926-1984) e Gilles Deleuze (1925-1995), parecem ignorar a violência epistêmica do imperialismo ao repor o sujeito transparente do conhecimento, como aquele que fala e que escreve pelo Outro. Jacques Derrida (1930-2004) seria, segundo Spivak, um contraponto a estes autores, pois é ele quem faz a crítica ao etnocentrismo europeu e à sua tendência de, ao produzir a alteridade, se estabelecer como sujeito soberano, apontando que tal mecanismo é característico do pensamento europeu.
A autora chama atenção também para as colaborações sutis entre a colonização britânica na Índia e as elites nativas na produção de leis e na formação de uma consciência-nacionalista. Diante disso, vê-se surgir um Estado-nação indiano cujos interesses estão alinhados aos da elite brâmane (e por extensão, ao governo britânico). Spivak se detém no ritual de autoimolação das viúvas para demonstrar, por meio dos registros coloniais e da lei e mitologia hindus, que a voz da mulher subalterna, encerrada entre o colonialismo e o patriarcado, jamais é escutada – mesmo no caso-limite de um ritual de suicídio (Sati ou Suttee). Ainda em relação a esses rituais, os documentos escritos pelas elites e legalistas indianos, assim como por dirigentes britânicos, advogam pela liberdade da mulher, mas de diferentes perspectivas. Os britânicos, ao abolirem o ritual, entendem-se como os (homens brancos) salvadores dessas mulheres, que seriam oprimidas pelos seus pares (homens de pele escura), provendo a elas, portanto, uma liberdade de escolha. As elites nativas, por sua vez, atreladas a um ponto de vista masculino, elogiam o status transcendental que a mulher adquire ao se jogar na pira funerária do marido, rumo à pureza e à libertação de seu corpo feminino. Spivak aponta que, não importa de que lado se olhe, a “voz-consciência” dessas mulheres é sempre silenciada, uma vez que não há estruturas políticas, espaços legais e linguagens para que suas demandas possam ser ouvidas.
Ao contrário dos intelectuais a quem denomina pós-estruturalistas, a autora não aposta no fim da representação, mas traça limites para ela, na medida em que o papel do intelectual não seria falar pelo/a subalterno/a. Sua crítica é gestada no bojo do grupo de Estudos Subalternos [Subaltern Studies], originário do sul asiático, em especial da Índia, durante a década de 1980 e que mobiliza o termo pós-colonial para se referir não somente a um tempo histórico posterior aos processos de descolonização de África, Ásia e América, como também a um conjunto de ideias e textos políticos e culturais, ações e reflexões teóricas que lidam com as consequências do colonialismo e possíveis respostas a ele. Dentre os pensadores mais importantes deste grupo estão Ranajit Guha (1923-), Partha Chatterjee (1947-) e Dipesh Chakrabarty (1948-).
Pode o Subalterno falar? é um marco para os estudos pós-coloniais e de gênero, tendo ecos importantes nos debates sobre a autoridade etnográfica, sobre o “lugar de fala” e a chamada “virada ontológica” na antropologia. No Brasil, o texto é lido e debatido sobretudo em contexto de produções teóricas feministas, filosóficas e de estudos de/pós-coloniais.
Como citar este verbete:
PEREIRA, Sasha Cruz Alves. “Pode o Subalterno falar?”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2022. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/pode-o-subalterno-falar
ISSN: 2676-038X (online)
Sasha Cruz Alves Pereira
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