obra
Os ritos de passagem

No livro Os ritos de passagem (1909), o antropólogo franco-holandês Arnold van Gennep (1873-1957) dedica-se ao estudo dos rituais a partir de vasto conjunto de dados etnográficos, identificando uma classe específica de ritos, que ele denomina ritos de passagem. Sob essa classe de ritos, indica o autor, é possível agrupar uma grande variedade de rituais que observam um padrão recorrente de distribuição cerimonial, de acordo com a proposta geral da obra de estabelecer uma esquematização dos mecanismos rituais, ou “as razões de ser das sequências cerimoniais”.

Van Gennep decompõe os ritos de passagem em três categorias: “ritos de separação”, “ritos de margem” e “ritos de agregação”, que permitem entender o funcionamento das passagens que se expressam no ritual. Todos os ritos de passagem contem as três fases, porém cada qual enfatiza um dos aspectos da passagem. Por exemplo, os ritos de nascimento enfatizam a agregação, enquanto os ritos funerários, a separação. A fase de margem, especificamente, pode vir a destacar-se nas realizações cerimoniais, constituindo uma etapa autônoma. A margem assume papel central na análise ritual de Van Gennep que, pelo exame dos ritos de passagem material, revela a importância do espaço intermediário existente entre eles, como no caso dos ritos vinculados aos pórticos, aos limites do mundo doméstico ou às fronteiras entre o mundo profano e mundo sagrado. Se os ritos de margem são também chamados de “liminares”, os ritos de separação são “preliminares” e os de agregação, “pós-liminares”.

© Sylvia Caiuby Novaes, 1977. Aldeia Bororo do Córrego Grande. "Ao nascer do dia a criança é ornamentada por sua mãe e sua avó materna e recebe o nome de seu tio materno". Reprodução autorizada pela autora.

Estabelecer o esquema de funcionamento ritual, objetivo da obra, não significa reduzir todos os rituais ao sentido único da passagem; cada rito tem finalidade e significado específicos, ainda que nos cerimoniais a finalidade particular de cada ritual possa se justapor, ou se combinar, àquelas presentes nos ritos de passagem. Nestes, em que fica marcado o deslocamento entre condições de pureza e impureza, podem-se ver exemplos fundamentais para a compreensão das modificações de estados propiciados pelo cerimonial, no qual ocorre a combinação com certos ritos elaborados de modo a reduzir eventuais efeitos nocivos dessa mudança de estado. Tal elaboração permite ao autor conceber um dos pontos centrais de sua reflexão, denominada de “rotação do sagrado”: o valor do sagrado não é fixo, mas depende da posição que a pessoa (objeto do rito) ocupa nas “sociedades especiais” entre si e em relação às “sociedades gerais”, o que nos leva a notar que as concepções de van Gennep acerca dos ritos de passagem encontram-se amparadas em determinada concepção de sociedade. Para ele, toda “sociedade geral” é composta por “sociedades especiais”, entre as quais o indivíduo transita durante a vida (ao envelhecer ou ao mudar de atividade, por exemplo). Mas esses trânsitos adquirem caráter especial nas sociedades que o autor considera inferiores na escala civilizacional. Nestas, as divisões entre as “sociedades especiais” são mais definidas, o indivíduo se encontra inserido em certas classes, como as de idade ou de atividade, e as transições entre os diferentes domínios mostram-se assim muito marcadas. De modo a apresentar tal ideia de sociedade, o autor lança mão da metáfora da casa dividida em quartos e corredores: quanto mais próximas da sociedade moderna, as paredes se estreitam e as portas se alargam, ao passo que entre os “semicivilizados”, as paredes se tornam mais espessas e as portas mais estreitas; nestas sociedades, com compartimentos cuidadosamente isolados uns dos outros, verificam-se atitudes formalizadas e cerimônias necessárias aos deslocamentos dos indivíduos de uma situação à outra. A maior ritualização nas sociedades menos civilizadas se explica, segundo o autor, pela menor distinção entre os universos religioso e leigo, uma vez que nelas o mundo sagrado tende a predominar sobre o profano. Tal situação faz com que inúmeros aspectos da vida social (nascer, caçar, deslocar-se, envelhecer, casar etc.) estejam imersos nos cerimoniais dos rituais mágico-religiosos, termo usado por van Gennep para marcar a interrelação entre a religião, caracterizada como campo teórico e a magia, vista como técnica, para a análise dos ritos de passagem.  

Em diálogo com as teorias de sua época, o autor parte da tipologia então consagrada no período que distingue ritos simpáticos, que definem sua ação mágico-religiosa a partir de entes evocáveis pela ação cerimonial, e ritos de contágio, nos quais os objetos ocasionam efeitos mágico-religioso quando operados ritualmente. Localiza também a teoria animista, de base personalista, que categoriza os rituais de acordo com qualidades humanas atribuídas a não-humanos, animais ou vegetais, e a classificação dinamista, que atenta para a expressão ritual na ausência de forças personalistas extrínsecas. Cada um desses aspectos pode ser encontrado sob variadas combinações nos rituais, acarretando dificuldades em interpretar e classificá-los de forma abrangente. O autor distancia-se de todas essas teorias por considerar necessária uma explicação que contextualize os rituais e dê conta de suas sequências, avançando assim de uma classificação baseada em semelhanças formais destacadas a partir dos ritos, na direção de uma sistematização que corresponda aos mecanismos de operação cerimoniais em suas razões de ser (como se observa nos sentidos gerais presentes nos ritos de passagem).

A importância da análise de van Gennep reside não apenas no fato de ter cunhado a expressão rito de passagem mas na ênfase que coloca na “razão de ser” do rito e do mecanismo ritual. Ao conferir autonomia ao rito como objeto de estudo e ao considerá-lo no interior de sequências, e não de modo isolado, van Gennep torna-se referência para os estudos posteriores do ritual, influenciando autores importantes, como Victor Turner (1920-1983), que incorpora a visão do rito como composto por etapas, desenvolvendo a ideia de liminaridade anunciada por seu antecessor, além de outros como Mary Douglas (1921-2007), Edmund Leach (1910-1989) e, no Brasil, Roberto Da Matta (1936-).

Como citar este verbete:
ARNAULT, Renan & ALCANTARA E SILVA, Victor. “Os ritos de passagem”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/os-ritos-de-passagem>

ISSN: 2676-038X (online)

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R
data de publicação
12/12/2016
autoria

Renan Arnault e Victor Alcantara e Silva

bibliografia

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DOUGLAS, Mary, Purity and danger, London, Routledge & Kegan Paul, 1966 (Trad. Bras. Mônica Siqueira Leite de Barros e Zilda Zakia Pinto, São Paulo, Editora Perspectiva, 1976)

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