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Emilie Snethlage

A ornitóloga alemã Emilie Snethlage (1868-1929) é considerada uma das pioneiras das ciências no Brasil, mas sua biografia é também relevante para entender a institucionalização incipiente da antropologia brasileira no início do século XX. Para a história da antropologia no Brasil são importantes sua participação numa rede transnacional de etnólogos, suas pesquisas etnológicas e linguísticas entre povos indígenas do Pará e sua relação com o etnólogo Curt Nimuendajú (1883-1945).

Emilie Snethlage nasceu em 13 de abril na aldeia de Kraatz, perto da cidade de Gransee, antiga província de Brandemburgo do Reino da Prússia (atual distrito de Overhavel, estado de Brandemburgo). Filha de um pastor luterano, Emil Heinrich Snethlage (1833-1892), e de uma professora, Elisabeth Snethlage (1831-1872), Emilie despertou o interesse científico estimulada pelo pai, descrito como defensor de pautas sociais e democráticas, e dotado de mente aberta para conhecimentos empiricamente comprovados. A herança paterna possibilitou que ingressasse no doutorado em História Natural na Universidade de Freiburg im Breisgau, primeira universidade no Império Alemão a permitir a matrícula de mulheres. Após estudos complementares em Zoologia e Geologia nas universidades de Berlim e Jena, defendeu a tese em Freiburg, em 1904, como uma das primeiras mulheres a obter o doutorado na Alemanha. Devido às dificuldades para alcançar estabilidade profissional no meio acadêmico alemão da época, o ornitólogo Anton Reichenow (1847-1941) intermediou sua contratação como assistente de pesquisa de Emilio Goeldi (1859-1917), diretor do Museu Paraense de História Natural e Etnografia em Belém (atual Museu Paraense Emilio Goeldi), que tinha, na época, uma equipe composta por pesquisadores e técnicos, majoritariamente imigrantes de língua alemã.

Emilie Snethlage (em pé), com funcionárias do Museu Paraense, Anna de Aragão Carreira e Abigail Esther de Mattos, início do sec. XX. Acervo do Fundo Emília Snethlage, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém - PA.

Snethlage emigrou para o Brasil em 1905. Quando faleceu Jacques Huber (1867-1914), que sucedera a Goeldi em 1907, foi nomeada diretora do museu e exonerada em 1916, em razão do clima germanofóbico reinante durante a Primeira Guerra Mundial. Reempossada como diretora após o fim da guerra, seria responsável pela gestão do museu em sua fase mais crítica, tentando impedir seu declínio, mas foi demitida em 1922 após uma série de acusações difamatórias, tanto misóginas quanto xenófobas, na imprensa local. No mesmo ano, conseguiu a transferência para o Museu Nacional no Rio de Janeiro, ao qual esteve vinculada até sua morte repentina em 25 de novembro de 1929 em Porto Velho, Rondônia, enquanto organizava uma expedição para conhecer a avifauna da região do Rio Madeira.

Desde sua formação universitária, a biografia acadêmica e pessoal de Emilie Snethlage esteve permeada por obstáculos e discriminações devido a sua nacionalidade e ao gênero. Nas salas de aula, por exemplo, tinha a obrigação de chegar com quinze minutos de antecedência, de se sentar na parte final da sala, atrás de um biombo, sem permissão de direcionar perguntar aos professores. Para publicar seu primeiro texto na Zeitschrift für Ethnologie, ela pediu a Koch-Grünberg numa carta datada de 16 de março de 1910 que seu nome fosse publicado apenas como “Dr. E. Snethlage”, sem identificação de gênero.

As contribuições científicas de Snethlage ficaram conhecidas, sobretudo, na ornitologia brasileira, campo no qual é considerada pesquisadora destacada, tendo descrito, pela primeira vez, diversas espécies de aves, entre 1905 e 1929, e recebido homenagens de associações e organizações acadêmicas nacionais e internacionais. Ao lado disso, publicou uma série de trabalhos etnológicos, linguísticos e geográficos. Antes da Primeira Guerra Mundial, suas viagens e expedições de pesquisa ficaram restritas à Amazônia, sobretudo ao sul e sudeste do Pará; duas delas têm relevância especial para a antropologia. A primeira, realizada em 1909, teve o objetivo de descobrir uma passagem terrestre entre os sistemas fluviais do Xingu e do Tapajós, subindo os rios Iriri e Curuá até alcançar o alto curso do Jamanxim, afluente direito do Tapajós. A viagem foi realizada em companhia de indígenas Xipaya e Kuruaya. A segunda expedição, para os territórios dos Xipaya e Kuruaya na região dos rios Iriri e Curuá, realizada com apoio do Museu Etnológico de Berlim, teve caráter exclusivamente etnográfico. Os artigos de Snethlage sobre culturas e línguas desses dois povos indígenas foram publicados primeiro na Alemanha e bem recebidos no meio antropológico. Um texto sobre a língua dos Tembé - resultado do exílio temporário em Missão Santo Antônio do Prata, leste do Pará, até o fim da primeira guerra - foi publicado postumamente por seu sobrinho Emil Heinrich Snethlage (1897-1939). Além disso, o Museu Etnológico de Berlim recebeu uma coleção valiosa de objetos etnográficos dos Xipaya e Kuruaya.

Snethlage conseguiu estabelecer uma abrangente rede internacional de contatos acadêmicos, que incluíam etnólogos vinculados a instituições e associações berlinenses como Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), Eduard Seler (1849-1922) e Max Schmidt (1874-1950). Um dos resultados mais importantes dessas redes foi a intermediação junto a Koch-Grünberg para que fosse publicado na Zeitschrift für Ethnologie, em Berlim, o primeiro trabalho científico de um desconhecido emigrante alemão sem formação acadêmica, Curt Nimuendajú. A aliança entre Snethlage e Nimuendajú no período de 1914 a 1922 preparou o caminho para que este se tornasse um dos etnólogos mais conhecidos da antropologia no Brasil. A atuação de Emilie Snethlage foi também decisiva para o caminho profissional de seu sobrinho Emil Heinrich, que optou pela etnologia depois de uma longa expedição naturalista, de 1923 a 1926, em parte realizada em companhia da tia.

Por várias décadas, a vida e obra de Snethlage mantiveram-se praticamente esquecidas nos dois lados do Atlântico, sobretudo na antropologia. Sua redescoberta deu-se timidamente na década de 1980, graças à iniciativa de Osvaldo Rodrigues da Cunha, pesquisador vinculado ao Museu Goeldi. O principal impulso para recuperar a memória da autora veio de uma série de trabalhos realizados a partir da primeira década deste século, tendo como autores Miriam Junghans, Nelson Sanjad e Gleice Mere. Isto foi possível, sobretudo, pelo acesso ao arquivo familiar guardado pelos descendentes de Emil Heinrich Snethlage em Aachen, na Alemanha.

Como citar este verbete:
SCHRÖDER, Peter. “Emilie Snethlage”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/emilie-snethlage

ISSN: 2676-038X (online)

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