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Lélia Gonzalez

Intelectual e ativista negra, Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) destaca-se por sua  produção e por intensa atuação política contra o racismo e o sexismo. As discussões que propôs sobre questões identitárias e sobre relações de raça e gênero no Brasil repercutem em diversos campos do conhecimento, encontrando forte eco nos estudos culturais e na antropologia. Filha de uma empregada doméstica de origem indígena e de um homem negro, ferroviário, pertencente a uma extensa família operária, Lélia migra de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro em 1942, onde se forma em história e filosofia, tornando-se professora na rede básica de ensino e no ensino médio, lecionando em escolas públicas e privadas. Realiza mestrado em comunicação social e doutorado em antropologia, tornando-se professora e pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, entre 1978 e 1994.

© Januario Garcia Filho, Lelia Gonzales. Reprodução autorizada pelo artista.

O Movimento do Direitos Civis nos Estados Unidos, historicamente localizado entre os anos de 1950 e 1970, encontra forte repercussão no Brasil, impactando as lutas sociais pela igualdade e contra a discriminação racial. No Rio de Janeiro, particularmente, a cidade viu-se marcada por intensa mobilização artística e política voltada para a questão racial ao longo dos anos 1970, tendo como uma de suas principais manifestações o Movimento Black Rio, duramente combatido pela ditadura militar. O movimento se expressa sobretudo por meio da produção musical sob influência do soul americano; toma festas e bailes, acompanhado da adoção de nova estética: roupas coloridas e cabelo black power. É esse contexto de mobilizações contra o lugar subalterno dos negros na sociedade brasileira que leva à criação de novos espaços de reflexões e debates - por exemplo, as “Semanas afro-brasileiras” promovidas pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA - RJ) e pela Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil (SECNEB- BA) - que Lélia Gonzalez funda o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, em 1976. No mesmo período, inicia o primeiro curso de cultura negra no Brasil, na Escola de Artes Visuais (EAV), do Parque Laje. Frequentado por muitos artistas e intelectuais, o curso tem como proposta analisar a contribuição africana na formação cultural brasileira de forma mais ampla. Ao lado disso, a autora participa da luta de resistência à ditadura, na origem do Movimento Negro Unificado (MNU), atuando ainda pelo fortalecimento da organização das mulheres no seu interior, como mostram, por exemplo, sua participação no Centro de Luta Maria Felipa e Luiza Mahin e mais tarde no Nzinga Coletivo de Mulheres Negras. Nos anos 1980, Lélia Gonzalez é indicada para o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM (1986-1989); nas eleições de 1982, apresenta-se como candidata a deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e, em 1986, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), permanecendo como suplente nas duas ocasiões.

Autora de livros como Lugar do negro (1982) – escrito com o sociólogo Carlos Hasenbalg (1942-2014) - e Festas populares no Brasil (1987), e de diversos artigos, por exemplo “A importância da organização de mulheres negras no processo de transformação social” (1980), “Por um feminismo afrolatinoamericano” (1988), “Racismo e sexismo na sociedade brasileira” (1989), Gonzalez é responsável por uma série de contribuições aos debates acadêmicos e políticos. Uma de suas principais temáticas volta-se para interpretações a respeito do período colonial brasileiro, criticando de modo veemente interpretações correntes sobre a sociedade brasileira que predominam em obras clássicas, como em Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre (1933). Em Racismo e sexismo na sociedade brasileira (1989), especificamente, González questiona o chamado mito da democracia racial, consolidado por meio dos escritos de Freyre, destacando sua violência simbólica sobre a mulher negra, associada em certo imaginário à “mulata”, à “doméstica” e  à “mãe preta”.

A questão da linguagem é outra frente de discussões atacada por González. “Pretuguês” é o termo por ela cunhado para se referir à tradição africana presente na língua portuguesa falada no Brasil; a característica tonal e rítmica do português seria uma herança das línguas dos povos africanos que vieram escravizados para o país. Além da contribuição africana, ela busca evidenciar a influência indígena na linguagem nacional, por considerar serem ambas matrizes desqualificadas ao não se adequarem aos padrões da chamada “norma culta” da língua. Nesse sentido, visa mostrar como a língua compreende formas de discriminação racial e exclusão social, destacando que a presença do “r” no lugar do “l” (quando se diz “framengo”, por exemplo) pode remeter à ausência da letra "l" em certos idiomas africanos do tronco linguístico bantu. Na mesma direção, quando se extrai o “r” dos infinitivos verbais ou quando se converte “você” em “cê”, ou ainda “está” em “tá”, se está falando pretuguês. Desde o período da colonização, não houve, segundo ela, uma aceitação passiva da língua dominante, mas uma apropriação criativa que a segue transformando.

Lélia Gonzalez deu importantes contribuições políticas e acadêmicas, tanto ao movimento negro em geral, como em sua vertente feminista, tendo dialogado de perto com autoras norte-americanas como Angela Davis (1944- ). No Brasil, é considerada uma das pioneiras na disseminação do debate acadêmico que intersecciona raça e gênero. As interpretações de Gonzalez impactaram gerações de pensadores brasileiros de diversas gerações, como Sueli Carneiro (1950-), Luiza Bairros (1953-2016), Djamila Ribeiro (1980-), Giovana Xavier, entre outras.

Como citar este verbete:
BARTHOLOMEU, Juliana S. 2019. "Lélia Gonzalez". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/lelia-gonzalez

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
28/07/2019
autoria

Juliana Stefany Silva Bartholomeu

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