Manuel Raymundo Querino (1851-1923) nasceu homem livre em Santo Amaro da Purificação, Bahia, no dia 28 de julho de 1851, ainda na vigência da escravização, e faleceu em Salvador no dia 14 de fevereiro de 1923, na primeira fase da República. Foi escritor, jornalista, historiador, além de militante abolicionista; foi ainda um dos alunos fundadores da Academia e Escola de Belas Artes da Bahia e membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Desenvolveu precocemente trabalhos de natureza etnográfica no Brasil, muito embora não tenha sido reconhecido na época em que viveu e nem mesmo após a sua morte, em função do racismo reinante no país e em suas instituições.
Durante a infância, a epidemia de cólera de 1855 matou sua mãe e seu pai. Órfão, foi enviado a uma casa de caridade e apadrinhado por um tutor, um homem branco da elite baiana, o político e educador Manoel Correia Garcia, que o iniciaria nos estudos; com isso garantiu o acesso e o convívio com acadêmicos e ministros de Estado que faziam parte do círculo social de seu tutor. Foi recrutado para atuar na guerra do Paraguai e, por ser letrado, serviu em uma área burocrática no Rio de Janeiro. Estudou arquitetura na Escola de Belas Artes e formou-se em desenho em 1882. Ativo politicamente, quando estudante, ainda no Império, auxiliou a fundar a Liga Operária Baiana (1876-1880), e no Brasil República, o Partido Operário (1890-1919).
Contemporâneo de Nina Raimundo Rodrigues (1862-1906), suas perspectivas são, entretanto, opostas às do antropólogo e médico baiano; enquanto Rodrigues parte do pressuposto da inferioridade biológica dos negros, Querino mostra a relevância e sabedoria destes. Os estudos sociais que realiza estão baseados em etnografias de diferentes aspectos do cotidiano e em análises históricas, empreendidos a partir de fontes orais e documentais. As dimensões de seu pensamento afro-atlântico podem ser notadas em obras como: As artes na Bahia (1909, 1913), Artistas baianos: indicações biográficas (1909, 1911), A raça africana e os seus costumes (1916,1955), O colono preto como fator da civilização brasileira (1918), A arte culinária na Bahia (1928), Costumes africanos no Brasil (1938), entre outras.
As pesquisas de Manuel Querino enfatizam os aportes africanos para a formação da sociedade brasileira a partir de exemplos concretos; em As Artes na Bahia (1909), por exemplo, estão incluídos trechos de biografias de trabalhadores e artesãos, que fornecem uma perspectiva inédita das vidas de pessoas negras e operárias. Dedicou-se ainda a registrar biografias de artistas, em sua maioria negros e mestiços, inclusive daqueles cujos trabalhos permaneciam anônimos e ignorados pelo público letrado, como os escultores Francisco das Chagas, Domingos Pereira Baião e Eustáquio Manoel da Cruz; os pintores José Joaquim da Rocha, Veríssimo de Souza Freitas entre tantos outros.
Outra contribuição importante de seu trabalho é o modo como faz uso das fotografias na produção historiográfica e etnográfica. As imagens utilizadas para ilustrar A raça africana e os seus costumes (1916/1955), por exemplo, mostram pessoas pretas de corpo inteiro, plenas, belas e sábias, com legendas que descrevem “Candomblezeiros em grande gala” e “Creoula em grande gala. A mãe do terreiro Gantois Pulchéria Maria da Conceição”; o que foi feito no início do século XX, momento em que as imagens fotográficas eram importantes aliadas do balizamento do racismo científico por meio da antropometria, e quando o candomblé era proibido por lei e sua prática reprimida por autoridades policiais.
Querino se destaca ainda por ter grafado precocemente o termo “escravizado”, evitando a problemática denominação “escravo”, usual à época e ainda hoje. A grafia pode ser conferida ao longo da escrita em toda sua obra, como em um trecho de A raça africana e os seus costumes (1916/1955): “De longa data, desde o domínio colonial, vinham os escravizados reagindo, por meio de insurreições, contra as barbaridades dos senhorios”. O que parece ser um detalhe semântico, revela-se uma decisão política por restituir humanidade a pessoas brutalmente violentadas.
Entre os temas sobre os quais trabalhou, todos envolvem a cultura afro-baiana e incluem assuntos variados como história, política, artes plásticas, desenho geométrico, religiões, biografias e também a cozinha popular baiana, tema importante para a compreensão da cultura regional brasileira. A versatilidade possibilitou a Querino desbravar novas frentes de reflexão, como indica o ensaio “O colono preto como fator da civilização brasileira” (1918), publicado em período pós-escravatura, no qual ele inverte a lógica dominante, indicando como as pessoas negras colonizaram o Brasil no sentido de produção de vida e de conhecimentos, de ciências, artes, culinária, literatura etc. Tal versatilidade, entretanto, foi considerada falta de rigor por muitos de seus contemporâneos, até mesmo por Artur Ramos (1903-1949), que organizou e prefaciou Costumes africanos no Brasil (1938); no texto do prefácio, Ramos sentencia: “muito haveria que discutir e retocar nestes ensaios de Manoel Querino” cuja “independência metodológica, sem ligações diretas com as tradições da Escola Bahiana, deixou-se resvalar em falhas e senões que de certo modo tiram a alguns de seus trabalhos, o exato sabor científico”.
Manuel Querino traçou uma trajetória improvável para uma pessoa negra no Brasil oitocentista; atualmente suas produções e pesquisas vêm obtendo reconhecimento com a ajuda de trabalhos como os do historiador norte americano E. Bradford Burns (1933-1995), da pesquisadora Sabrina Gledhill, entre outros. Sua presença cada vez mais constante em verbetes, sites e repertórios é outro indicador da retomada recente do autor e de sua obra.
Como citar este verbete:
D’AMATO, Andréa Silva. “Manuel Querino”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2023. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/manuel-querino
ISSN: 2676-038X (online)
Andréa Silva D’Amato
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GLEDHILL, Sabrina, (Re)apresentando Manuel Querino - 1851/1923: um pioneiro afro-brasileiro nos tempos do racismo científico, Editora Funmilayo, 2021
GLEDHILL, Sabrina, “A Pioneering Afro-Brazilian Ethnologist: The Life and Work of Manuel Querino”, in Bérose - Encyclopédie internationale des histoires de l'anthropologie, Paris, 2023, https://www.berose.fr/article2797.html?lang=fr. Acesso em 03 de dezembro de 2023
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