Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006) formou-se em filosofia na Universidade de São Paulo (USP) no início da década de 1950, mas é na antropologia que sua carreira se consolida. Seu primeiro contato com a disciplina ocorreu ainda na USP, através das aulas ministradas pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), que anos mais tarde orientaria sua tese de doutorado intitulada Urbanização e Tribalismo: A interação dos índios Terena em uma sociedade de classes (1966). Após a graduação, constrói sua trajetória antropológica em quatro instituições: primeiramente no Museu do Índio em 1954, onde iniciou um trabalho junto aos índios Terena, localizados no estado do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), e participou dos cursos de especialização em antropologia cultural ministrados por Darcy Ribeiro (1922-1997). Em 1958 torna-se professor no Museu Nacional, onde continua seus trabalhos em etnologia, junto aos Terena e aos Ticuna, do Alto Solimões, desenvolvendo o conceito de fricção interétnica. Ali cria o curso de especialização em teoria e pesquisa em antropologia social, baseado em um modelo que alia dedicação integral a ensino teórico e prático. Posteriormente, organiza com David Maybury-Lewis (1929-2007) o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na mesma instituição. Em 1972 transfere-se para a Universidade de Brasília (UnB), com a missão de criar o programa de mestrado e doutorado em antropologia. Nesse período dedica-se a outros temas de pesquisa, voltando-se para uma reflexão epistemológica sobre o fazer antropológico. Esse retorno à filosofia aprofunda-se com a mudança e contribuição para o curso de doutorado em ciências sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1985. Seu objetivo era desenvolver uma reflexão sobre o fazer antropológico no Brasil e em outros países considerados “periféricos”. Ao final da década de 1990 retorna à UnB, onde permanece trabalhando no Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (atualmente Departamento de Estudos Latino-Americanos) até a sua morte em 2006.
O breve apanhado de sua trajetória mostra que Cardoso de Oliveira participou ativamente do processo de institucionalização da disciplina antropológica no país, liderando a criação de programas de mestrado e doutorado. É importante destacar que ele tomaria parte nos primeiros trabalhos de avaliação da pós-graduação na área, participando de comissões da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); o antropólogo contribuiu decisivamente para o aprimoramento da pós-graduação no Brasil. Este engajamento institucional veio acompanhado de intenso trabalho intelectual e docente, que resultou em uma significativa produção acadêmica. Seus principais livros publicados são: O Índio e o mundo dos brancos (1964), A Sociologia do Brasil Indígena (1972), Sobre o pensamento antropológico (1988) e O Trabalho do antropólogo (1998).
O projeto intelectual de Roberto Cardoso de Oliveira pode ser dividido em dois momentos: as pesquisas sobre fricção interétnica e aquelas sobre o fazer antropológico no Brasil, em países que denominou “centrais” e “periféricos”. Os primeiros estudos projetam uma reflexão sobre as relações entre indígenas e sociedade nacional. O antropólogo propõe olhar para esse contato como uma disputa dos elementos da cultura a serem incorporados e da interdependência de recursos materiais e naturais; uma situação de contato entre sociedades e culturas, por meio de interesses opostos e interdependentes. Tal abordagem surge como alternativa ao conceito de aculturação, ou seja, da progressiva incorporação dos índios à cultura do mundo dos brancos, conceito então predominante no Brasil. A abordagem política em relação às sociedades indígenas, iniciada pelos estudos de aculturação encontra na crítica de Cardoso de Oliveira um espaço para ir além da associação corrente entre política e dominação: ele insere aí a noção de identidade étnica pensada como irredutível às mudanças sociais e culturais decorrentes do contato. Apesar disso, sua abordagem ainda recai sobre uma divisão dual entre “indígenas” e “brancos”, que mais adiante seria reformulada por João Pacheco de Oliveira (1948-).
O período de trabalho de Cardoso de Oliveira sobre relações étnicas foi marcado também pela criação do convênio Harvard-Central Brazil Research Project, uma parceria entre o Museu Nacional e a Universidade de Harvard, com o financiamento da Fundação Ford, que possibilitou o desenvolvimento de pesquisas de Cardoso de Oliveira, junto a Maybury-Lewis e aos alunos das instituições brasileira e americana. No interior do convênio foram desenvolvidos dois projetos: “Estudos de Áreas de Fricção Interétnica no Brasil” e o “Estudo Comparativo da Organização Social dos Índios do Brasil”. Essas iniciativas possibilitaram não apenas as pesquisas de Cardoso de Oliveira e o desenvolvimento da noção de fricção interétnica, mas também o trabalho de Roberto DaMatta (1936-) com os Gaviões e os Apinajé e o de Julio Cezar Melatti (1938-) com os Krahô. Os trabalhos desenvolvidos por Melatti e DaMatta no bojo do convênio mostram-se contribuições fundamentais aos estudos dos grupos indígenas Jê.
Já o conceito de “antropologias periféricas” foi utilizado pelo autor com o objetivo de compreender como as antropologias produzidas em certos contextos incorporavam, à sua maneira e com suas singularidades, a matriz disciplinar forjada nos “países centrais” e que as geraram, sem dela se desvincular. Os termos centro e periferia, tal como utilizados por ele, têm relação com a localização geográfica e sobretudo com o fato dos países serem, ou não, lócus originários da disciplina e de suas formulações teóricas – o centro corresponderia, assim à França, à Inglaterra e aos EUA. Essa pesquisa se desdobrou em um projeto envolvendo investigações em diferentes “países periféricos” e contou com a participação de outros antropólogos; neste caso, dois de seus mais próximos colaboradores foram Mariza Peirano (1942-) e Guilhermo Raul Ruben, que se debruçaram sobre a produção antropológica na Índia e no Canadá, respectivamente. Além de coordenar a pesquisa e organizá-la de uma perspectiva teórica, por meio de uma reflexão sobre os estilos da disciplina em contextos diversos, Cardoso de Oliveira dedicou-se a uma investigação sobre a antropologia catalã, desdobramento de uma estada como professor visitante em Barcelona, no primeiro semestre de 1992.
Internacionalmente, além do projeto financiado pela Fundação Ford, Cardoso de Oliveira desenvolveu relações próximas com o antropólogo mexicano Guillermo Bonfil Batalla (1935-1991) e com o México, conexões pouco exploradas até hoje pela historiografia da disciplina. Essa parceria rendeu diálogos entre suas pesquisas sobre as relações interétnicas e estimulou o intercâmbio de pesquisadores de instituições brasileiras e mexicanas. Assim, ele esteve também ligado à criação da Associação Latino-americana de Antropologia (ALA), em 1990.
O alcance do projeto de Cardoso de Oliveira para a antropologia fica claro diante de sua trajetória, que pode ser reconstituída graças ao seu próprio empenho em constituir um fundo documental, que seria disponibilizado ao público ainda em vida, algo pouco comum na história da disciplina no Brasil. Esse extenso material, que recobre todo seu percurso profissional na antropologia, pode ser consultado no Arquivo Edgard Leuenroth na Unicamp. As contribuições de seu trabalho de pesquisa e o seu esforço de institucionalizar a disciplina no país auxiliaram a formar uma geração de profissionais, como alguns dos antropólogos que participaram dos cursos de especialização do Museu Nacional e que continuaram o seu empenho em construir programas de pós-graduação na disciplina, como Alcida Rita Ramos (1937-), Julio Cezar Melatti, Roberto Augusto DaMatta e Roque de Barros Laraia (1932-). O trabalho de Cardoso de Oliveira reflete uma das características que imprimiu às instituições que ajudou a criar: a união entre ensino e pesquisa antropológica.
Como citar este verbete:
SERAFIM, Amanda Gonçalves. “Roberto Cardoso de Oliveira”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2020. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/roberto-cardoso-de-oliveira>
ISSN: 2676-038X (online)
Amanda Gonçalves Serafim
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