Resultado da junção dos termos “acústica” e “epistemologia”, acustemologia é um conceito criado pelo antropólogo estadunidense Steven Feld (1949-) na década de 1980, que visa compreender como a produção e a escuta do som (que inclui a música) pode ser um instrumento para a produção de conhecimento, de relações entre humanos e não humanos, e desses com o ambiente mais amplo. O conceito visa dar conta da existência de um espaço de interações entre os seres permeado pelo som, que não se limita à dimensão física, mas que se estende aos mundos não materiais: seres orgânicos e tecnológicos, vivos e não vivos, o que desafia a oposição entre natureza e cultura. O conceito mostra-se uma forma de entender o mundo não apenas de maneira passiva – pela escuta dos sons emitidos no espaço acústico – , mas com a ajuda de todos aqueles que ouvem e produzem sons, que trocam experiências e refletem juntos sobre suas práticas e percepções sonoras. A acustemologia seria, portanto, uma ferramenta para o entendimento de como os diferentes seres que habitam um mesmo espaço social ou geográfico constroem suas relações, tendo no som uma forma de conexão.
Músico profissional, Feld entra na antropologia trazendo em sua bagagem o conhecimento musical, o que direciona o seu olhar, e os seus ouvidos, para a música produzida pelos Kaluli em Bosavi, na Papua-Nova Guiné, que ele visita pela primeira vez em 1976. Os resultados de suas pesquisas encontram-se em Sound and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics, and Song in Kaluli Expression (1982), em um momento em que ele definia o seu campo de atuação como sendo o da etnomusicologia, a despeito das reservas que possuía em relação à noção. Para ele, o termo não seria adequado para se referir às produções musicais e sonoras de todas as sociedades, visto que a partícula “etno” cria um espaço entre “nós”, ocidentais, e os “outros”, não ocidentais. Nesse sentido, a etnomusicologia tomaria a música ocidental como parâmetro para avaliar toda e qualquer produção musical, independente do período ou do contexto. Opondo-se a essa visão, Feld defende que o estudo das produções sônicas deve abarcar não só manifestações musicais, mas as diversas expressões no interior da paisagem sonora de uma sociedade. Por pretender ir além do som humano, a noção de acustemologia visa também atenuar as tensões entre os campos de estudo da antropologia e da musicologia: a primeira, centrada no homem e a segunda, no conceito europeu de música.
Inspirando-se nos termos do músico e pesquisador Bernie Krause, em A grande orquestra da natureza: descobrindo as origens da música no mundo selvagem (2013) – antropofonia (sons emitidos pelos seres humanos e por instrumentos construídos por ele); biofonia (sons emitidos por fontes biológicas não humanas, como animais e outros seres) e geofonia (sons emitidos por fontes não biológicas, como geleiras, rios, etc.) – , Feld projeta a acustemologia como um modo de entender o som como parte de um processo mais amplo de relação entre os seres, capaz de gerar conhecimento, em função de interações e trocas. A compreensão do som envolve uma experiência física e material, já que som seria qualquer tipo de vibração do ar captada pelas células dos nossos ouvidos e transformadas em impulsos elétricos que são enviados para o cérebro; carrega, além disso, uma dimensão social, pois aquilo que ouvimos, e a forma como ouvimos, traz as marcas de nossas experiências e da sociedade. Várias destas experiências são relatadas de maneira aprofundada no livro sobre os Kaluli (1982). Mas a acustemologia de Feld refere-se também às grandes capitais urbanas, como Acra, em Gana, na qual o autor discorre sobre o cenário do jazz em Jazz cosmopolitanism in Accra: a memoir of five musical years in Ghana (2012) e a vilarejos na Europa, experiência etnográfica que resultou em CD intitulado The Time of Bells 1: Sounscapes of Italy, Finland, Greece and France, 2004, no qual Feld faz-nos ouvir os sinos das pequenas cidades dentro de uma determinada paisagem acústica.
É possível encontrar ecos das reflexões de Feld no artigo The Language of the Forest Landscape and phonological iconism in Umeda (1995), de autoria do antropólogo britânico Alfred Gell (1945-1997) e no livro do antropólogo Timothy Choy, Ecologies of Comparison: An Ethnography of Endangerment in Hong Kong (2011). No Brasil, a noção de acustemologia ainda é pouco utilizada, sendo etnomusicologia o termo mais empregado no campo da antropologia para definir trabalhos que envolvem música e emissões sonoras. Se dispomos, até o momento, da tradução de poucos textos de Steven Feld para o português, alguns pesquisadores, etnomusicólogos ou não, citam e debatem seus conceitos, por exemplo João Miguel Sautchuk, no texto “Interesse moderno pelo folclore: nação e cultura no Mapa Musical do Brasil da gravadora Marcus Pereira” (2012); Rafael José de Menezes Bastos no artigo “Esboço de uma Teoria da Música: para além de uma antropologia sem música e uma musicologia sem homem” (1995) e Uirá Garcia em “Além do que se vê: ecologias do som e do silêncio” (2019).
© Steven Feld (dir. e prod.); Dennis Leonard (prod.); Jeremiah Ra Richards (dir.). Prévia do documentário Voices of the Rainforest: a Day in the Life of Bosavi (2019), Documentary Educational Resources (DER). Todos os direitos reservados.
Como citar este verbete:
BRITO, Érico de Souza. “Acustemologia - Steven Feld”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2019.
Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/acustemologia-steven-feld>
ISSN: 2676-038X (online)
Érico de Souza Brito
BASTOS, Rafael José de Menezes, “Esboço de uma teoria da música: para além de uma antropologia sem música e uma musicologia sem homem”, Anuário Antropológico/1993, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995, p. 9-73
CHOY, Thimoty, Ecologies of comparison: An ethnography of endangerment in Hong Kong, Duke University Press, 2011
FELD, Steven, “Acoustemology” In: David Novak e Matt Sakakeeny (orgs.), Keywords in Sound, Duke University Press, 2015. Disponível em: http://www.stevenfeld.net/s/2015-Acoustemology-k82p.pdf
FELD, Steven, “From Ethnomusicology to echo-muse-ecology: Reading R. Murray Schafer in the Papua New Guinea rainforest”, The Soundscape Newsletter, nº 08, June, 1994. Disponível em: https://www.acousticecology.org/writings/echomuseecology.html
FELD, Steven, Jazz cosmopolitanism in Accra: a memoir of five musical years in Ghana, Duke University Press, 2012
FELD, Steven, Sound and sentiment: Birds, weeping, poetics, and song in Kaluli expression, Duke University Press, 2012
FELD, Steven, "Simpósio sobre sociomusicologia comparativa: Estrutura sonora como estrutura social", Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 18, n. 1, jan./jun. 2015, p. 177-194. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/40613/20731
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FELD, Steven, “A rainforest acustemology”, In: Michael Bull e Les Back (orgs.), The auditory culture reader, Oxford & New York: Berg, 2003, p. 223-239 (trad. bras. Vítor Vieira Machado, Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 20, n. 1, 2018, p. 229–254. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2018v2…)
GARCIA, Uirá, “Além do que se vê: ecologias do som e do silêncio”, Diversidade Socioambiental, n. 8, 2019. Disponível em: https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n8
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KRAUSE, Bernie, The great animal orchestra: finding the origins of music in the world's wild places, New York, Little, Brown and Company, 2012 (Trad. Bras. Ivan Weiz Kuck, Rio de Janeiro, Zahar, 2013)
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SAUTCHUK, João Miguel, “Interesse moderno pelo folclore: nação e cultura no Mapa Musical do Brasil da gravadora Marcus Pereira”, Anuário Antropológico, v. 37 n. 1, Brasília, UnB, 2012, p. 261-288
SCHAFER, R. Murray, The tuning of the world, New York, A.A. Knopf, 1977 (Trad. Bras. Marisa Trench Fonterrada, São Paulo, Ed. Unesp, 2011)
SCHAFER, R. Murray, The thinking ear, Toronto, Arcana Editions, 1986 (Trad. Bras. Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal, São Paulo, Ed. Unesp, 2011)
SILVA, Rita de Cácia Oenning da, “Sons e sentidos: entrevista com Steven Feld”, Revista de Antropologia, São Paulo, USP, Vol. 58 nº 1, 2015, p. 439-468