conceito
Hierarquia - Louis Dumont

Hierarquia, tal como o termo é empregado, pode estar relacionada a duas concepções: como sinônimo de relação de poder (numa ideia de governo) ou como ordem de classificação (em uma rotina de prioridades, na qual um termo tem precedência sobre outros). Essas são noções comuns na maioria das sociedades ocidentais, mas a antropologia tem pensado o problema de outros modos, especialmente quando olha para realidades diferentes, para o sistema de castas na Índia, por exemplo. Mesmo com diferenças importantes, há razões para indagar se a hierarquia é um dado universal, que está em todo lugar, ou se é uma projeção de nossas próprias ideias sobre outras sociedades. O antropólogo que mais desenvolveu estas questões, dando pistas sobre a universalidade da hierarquia e ao mesmo tempo recusando uma razão ocidental sobre ela, foi o francês Louis Dumont (1911-1998), aluno de Marcel Mauss (1872-1950), e um dos principais etnólogos a trabalhar na Índia.

Nos primeiros estudos realizados no sul da Índia, logo após a 2ª Guerra Mundial, Dumont produziu uma alternativa à interpretação consagrada de Max Weber (1864-1920) sobre as castas indianas, e a partir destas uma teoria da hierarquia. A casta, no sentido sociológico dado até então, era vista como uma forma radical de relação de poder: o princípio de sua estruturação implicava a separação entre estratos e a subordinação entre eles. As posições sociais – compreendidas numa ordem que elencava brâmanes, xátrias, vaixás, shudras e os dálites numa relação de poder e divisão de trabalho semelhante às da Europa feudal – eram vistas por Weber e outros, a partir da ausência de mobilidade social. No entanto, Dumont, que vinha de um forte debate provocado pelo estruturalismo de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), procurou entender as castas mais pelo princípio que as relaciona do que por aquilo que as separa.

O antropólogo se afastou das interpretações correntes quando olhou para os sistemas de parentesco que encontrou entre populações dravidianas do sul da Índia. Nestes, a aliança (contrato de realização das trocas matrimoniais tal como postulado por Lévi-Strauss em As estruturas elementares do parentesco em 1949) foi repensada a partir de relações que se realizam (ou não) em função de um cálculo mental anterior à sua concretização. “Sistemas de afinidade” (e não de aliança) ocorrem em função do que é classificado como pessoas casáveis e não-casáveis, que no caso sul-indiano equivalem a afins ou consanguíneos do sexo oposto. O que orienta o cálculo no qual alguém situa as pessoas em uma ou outra possibilidade é o que Dumont chamou de “valor”. A importância desta noção é que ela se projetará posteriormente para pensar as demais relações entre as castas, e a partir delas a hierarquia. A análise das castas deveria registrar seu aspecto relacional, integrado na forma de um sistema orientado em função de um valor que mostra quais são (e quais não são) as relações possíveis entre castas, subcastas e pessoas que vivem numa mesma casta. Por exemplo, casamentos entre pessoas de castas diferentes são proibidos; relações de trabalho devem seguir um determinado encadeamento de prestações e dádivas que obedeça a ordem hierárquica; e a religião, que se reflete em um princípio de pureza, opõe a casta dos brâmanes (superior) às demais e em vários níveis e sub-níveis. Tais noções foram sintetizadas na mais importante etnografia do autor, Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações (1966). No centro do argumento, a pureza – que representa um princípio sagrado –  “engloba” as relações de poder, que na Índia se situam em um plano inferior e contrário. Isto significa que, no sistema indiano, as relações de poder estão em um plano inferior às da pureza religiosa, o que produz uma série de implicações, inclusive na organização social.

D. Poor, T. Vardapillay, Rev. W. Twining, Casta de caçadores de cobras, desenho em mica. In: Seventy two specimens of castes in India (etc.), 1837. Biblioteca da Universidade de Yale. Domínio Público.

Em termos históricos, os grupos sociais na Índia se constituíram numa relação de interdependência, vista a partir do movimento em que os brâmanes foram ganhando pureza ao passo que os dálites foram se posicionando como seus contrários, permanecendo intocáveis ou impuros. Ao longo do tempo, essa relação tornou-se um parâmetro para as demais, e as diferentes posições engendradas nesse sistema produziram um mapa que situava pessoas e grupos em função de sua pureza. O modelo e as posições sociais se plasmaram e formaram um sistema de relações que conferiu feição holista às castas. Nada, nem ninguém, pode ser lido separadamente dos demais. É a pureza que determina as profissões, trocas, representações políticas e ideológicas. Para Dumont esse é um ponto de difícil compreensão, pois se organiza envolvendo todos em um mesmo princípio (que ora ele chama de englobamento, ora de holismo) e através de uma contradição entre o sagrado e as relações político-econômicas, que se situam em um plano inferior. A esta relação de “englobamento do contrário” Dumont chamou de hierarquia.

O ponto mais relevante que a hierarquia dumontiana coloca em relação às etnografias até então produzidas – na sua maioria por antropólogos indianos em universidades britânicas – é a importância dada à interdependência entre as castas, e ao seu aspecto pan-indiano. A sua leitura gerou uma série de reações, várias delas comentadas no prefácio da edição de 1967 de Homo hierarchicus. Um dos maiores problemas apontados pelas críticas é que o sentido da noção de hierarquia nem sempre é claro: Uma ideia? Forma de organização social? Relação lógica entre partes e todo? Para responder às questões, uma primeira característica a ser considerada diante da noção de hierarquia para Dumont é a capilaridade entre “relações, valores e classificação” dentro de um sistema de termos articulados, e a oposição entre esta noção de sistema e o modo como o senso comum ocidental pensa a hierarquia.

Ao contrário das sociedades ocidentais, que isolam elementos e indivíduos, tudo na Índia é pensado no interior de uma relação, o que leva a hierarquia a prevalecer como modelo ou prescrição para todas as castas, inclusive aquelas exógenas (os invasores ingleses ao longo dos séculos XIX e XX, por exemplo). O fato de os brâmanes terem preservado sua condição de pureza diante do domínio político estrangeiro levou o autor a se desfazer da ideia de que a hierarquia implicava necessariamente em poder. Tal percepção antropológica da hierarquia apresenta uma perspectiva não-projetiva daquilo que ele chama de ideologia ocidental, baseada nas ideias de individualismo e igualitarismo como pontos de partida, onde a nossa hierarquia entre grupos e/ou pessoas acaba se tornando uma relação artificial (produzida, não dada) de poder.

A perspectiva de Dumont abriu caminhos para análises de outros sistemas sociais, seja pela relativização da hierarquia e do individualismo, seja para análises de sociedades que possuem “hierarquia sem poder”, ou ainda de sistemas onde se combinam vários tipos de hierarquia. Sua perspectiva ecoa na leitura que Roberto Da Matta (1936-) fez do “dilema brasileiro”, ao mostrar um conjunto de relações hierárquicas que, de um lado, atravessa uma sociologia das classes e, de outro lado, engloba o pretenso individualismo político de nosso sistema legal.

Como citar este verbete:

LEIRNER, Piero. “Hierarquia - Louis Dumont”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2021. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/hierarquia-louis-dumont

ISSN: 2676-038X (online)

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H
data de publicação
14/12/2021
autoria

Piero Leirner

bibliografia

DA MATTA, Roberto, Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1983

DUMONT, Louis, Affinity as value: marriage alliance in South India with comparative essays on Australia, London, University of Chicago Press, 1983

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DUMONT, Louis, Homo hierarchicus. Le système des castes et ses implications, Paris, Gallimard, 1967 (Trad. Bras. Carlos Alberto da Fonseca. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1997)

DUARTE, Luiz Fernando Dias, “O Valor dos valores: Louis Dumont na Antropologia contemporânea”, Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, UFRJ,  vol. 7, n. 3, p. 735-772, 2017

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PEIRANO, Mariza, “A Índia das aldeias e a Índia das castas”, Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, IUPERJ, v. 30,  n.1, 1987, p. 109-122