conceito
Morte social

A escravidão, definida pela despossessão total, alienação radical de si ou supressão da autonomia e dignidade em suas formas extremas, foi caracterizada pelo sociólogo jamaicano Orlando Patterson (1940- ), professor de sociologia da cátedra John Cowles na Universidade de Harvard, como uma forma de “parasitismo social” ou de “dominação social total”. Mais precisamente, do ponto de vista da condição do escravo, poderia ser caracterizada como uma forma de “morte social”, derivada de um ato original de violência que reduziu um homem ou mulher à escravidão. Este ato, fruto da guerra, mas também da trapaça e da rapina, entre outros fatores, afirma-se ainda em termos ideais como uma alternativa histórica à morte individual. Tal ato não significaria perdão ou remissão, mas “uma permuta condicional”, que cobra um preço: o da dignidade pessoal e da existência social do escravo como uma “pessoa”, reconhecida fora do domínio de seu senhor.

© Rosana Paulino, "Atlântico Vermelho", 2017. Impressão digital sobre tecido, recorte e costura. 127x110cm. Cortesia da artista e Mendes Wood DM. Foto: Isabella Matheus.

Subtraído das relações sociais que definem sua condição de pessoa, o escravo é alguém socialmente desenraizado, sem vínculos estatutários e familiares, direitos ou obrigações civis, rituais ou seculares, estando assim seccionado da cadeia de relações sociais que integram sujeitos a sociedades. Sem antepassados nem descendentes, só poderia ser “ninguém”, sem herança ou legado. Como discutem tanto Orlando Patterson em Escravidão e morte social (1982) quanto o antropólogo francês Claude Meillasoux (1925-2005), em Antropologia da escravidão - o ventre de ferro e dinheiro (1986), o que se enfatiza no caso de Patterson é a morte social, e no caso de Meillasoux, o desenraizamento, seu corolário.

A escritora e teórica cubano-jamaicana Silvia Winter (1928-), em “Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom” (2003) e a filósofa e artista de origem brasileira Denise Ferreira da Silva (1963- ), professora da Universidade da Colúmbia Britânica, em “No-Bodies: Law, Raciality, Violence” (2009) desenvolvem elementos-chave para situar a genealogia do afropessimismo e o debate sobre a humanidade/não humanidade negra, que repercutem na noção de morte social. Simplificando o argumento de Silva, vemos como a arquitetura filosófica ocidental, arsenal político e simbólico da racialidade, produziu os “outros” da Europa como sujeitos sem relevância ou significância para a vida ética. Nesse sentido, o que autoriza os massacres nas favelas brasileiras não seria uma lógica de exclusão, mas a própria construção do Estado e sua fundamentação. Desse ponto de vista, a chacina é a materialização de uma filosofia política, que permite que o sujeito da vida ética, não negro, se reconheça em sua autodeterminação. No Ocidente moderno e no âmbito de seus aparatos discursivos, não há dispositivos de compromisso ou de superação para a incomunicabilidade, e essencialmente in-humanidade projetada no corpo (do) negro, subsumido à condição ontológica do escravo, socialmente morto, que dessa forma, não está no mundo, nem pode ser convenientemente representado. Nessa direção, Winter argumenta que o reconhecimento da humanidade, ou sua invenção moderna, depende de códigos específicos da cultura “local”, ou seja, ocidental, baseados em condições discursivas e políticas determinadas: como o princípio, supostamente natural, que organiza o status sociopolítico dos sujeitos sob a forma do invariante absoluto branco/negro. Assim, a produção do humano é a própria produção do valor diferencial da raça, biologicamente inscrita.

Para o afropessimismo norte-americano vinculado ao pensamento radical negro e sob forte influência do psiquiatra e revolucionário martinicano Frantz Fanon (1925-1961), a ideia de morte social é também central. Em Red, White & Black – cinema and the structures of U.S. antagonisms (2011), o escritor e crítico norte-americano Frank Wilderson III (1956- ) é claro: a morte social definida por Patterson como característica fundamental da condição escrava, em termos universais, aparece redefinida como elemento central para a posição da negritude no contexto moderno. A gratuidade da violência, a desonra natal e inalienável, e o desenraizamento configuram uma modalidade de circunscrição e produção da pessoa do escravo que nega a sua humanidade, como um modo de conferir legitimidade política e, sobretudo, legibilidade fenomenológica ao mundo branco colonial. Por isso, conclui Frank Wilderson, a negritude não é uma identidade, mas uma posição (ou posicionalidade), essencialmente conectada à morte social. Nos termos do autor, não existe anterioridade narrativa para a negritude, como categoria, prévia à escravidão.

A morte social como categoria vivida da articulação estrutural entre o mundo antinegro e a negritude, e a antinegritude, como categoria descritiva da natureza histórica de um antagonismo estrutural central que nega em termos empíricos a coexistência entre o negro e o mundo, encontra uma terceira expressão complementar. Ela seria a manifestação concreta das muitas mortes de vidas negras, nomeada de genocídio negro pelo ativista antirracista, dramaturgo, político e artista visual brasileiro Abdias do Nascimento (1914-2011) em O Genocídio do Negro Brasileiro. Um processo de racismo mascarado (1978). A formulação foi seguida por um crescente número de ativistas e intelectuais negros hoje, como o antropólogo brasileiro, professor da Universidade da Califórnia – Riverside, João H. Costa Vargas (1966- ), autor de Never meant to survive – genocide and utopia in black diaspora communities (2010).

A condição de morte social, associada ao lugar estrutural da negritude como negação não só da branquidade, mas da própria humanidade, torna os sujeitos negros matáveis, os corpos negros devassáveis, a cultura negra expropriada na plantation (ou no mundo contemporâneo) por seus senhores, nos termos da historiadora estadunidense Saidiya Hartman (1960- ), em Scenes of subjection. Terror, slavery, and self-making in nineteenth-century America (1997). Frank Wilderson extrai consequências ontológicas desse condicionamento, de consequências graves e distintas para a esfera da atuação política. Os negros não teriam condições de articulação política no espaço conhecido como “sociedade civil”, segundo a tradição instaurada pelo filósofo marxista e político italiano Antonio Gramsci (1891-1937); argumento desenvolvido por Jared Sexton, professor da Universidade da Califórnia – Irvine, em “The social life of social death: on afro-pessimism and black optimism” (2010). Por não tomar a dimensão econômica (a economia política) para circunscrever as condições de subjetivação do sujeito negro, ou sua ontologia, Wilderson insiste na dimensão antagônica da experiência negra, que ele vê como muito além de constrangimentos materiais e econômicos. Em sua crítica, sujeitos negros são assediados por uma “economia libidinal” que conecta perversamente desejo e significação, definindo um campo que não poderia ser capturado somente por uma análise de classe social e desigualdade econômica.

Sob a sobredeterminação dessa “economia libidinal”, a consciência do negro é saturada na carne (flesh) pela filosofia ocidental, isto é, tem a qualidade de ser uma coisa, no limite um mero objeto que habita um mundo imanente, pré-significado, ou ser em um mundo aprisionado como “uma coisa dentre outras coisas”, conforme elaborado por Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952). Essa condição de “coisidade” mostra-se um obstáculo à (auto)representação e à (auto)interpretação das pessoas negras, porque pressupõe a negação da autoconsciência reflexiva, tornada objetiva na história, como quer Denise Ferreira da Silva; parafraseando a linguagem da dialética marxista, o negro não pode ser “para si”.

Interditada ou obliterada, a autoconsciência reflexiva da negritude é uma projeção rumo à ausência tanto de si como de qualquer contorno sólido para sua estabilidade ontológica. Como escreve Fanon, “o negro não é um homem”, o negro é um homem que “quer ser branco”. Nesse sentido, o sujeito negro está fora da dialética, ou de uma dialética que permitiria o surgimento da intersubjetividade e ao fim e ao cabo do próprio sujeito autoconsciente, como na clássica discussão filosófica encontrada no pensador alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e como desenvolve o sociólogo brasileiro Deivison Faustino em Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade (2022).

Como citar este verbete:
PINHO, Osmundo. 2022. "Morte social". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/morte-social

ISSN: 2676-038X (online)

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M
bibliografia

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