author
Michel Agier

Michel Agier (1953-) é um antropólogo francês nascido na cidade de Orange, cuja contribuição liga-se a temas relacionados à identidade, etnicidade, territorialidade, fronteiras, dinâmicas e processos socioculturais em contextos urbanos emergentes, além de questões ligadas à mobilidade humana e ao direito à cidade. Os deslocamentos daqueles considerados “indesejáveis” - objeto de sua atenção - resultam em agrupamentos identificados como campos de refugiados e locais de exílio, denominados por ele de “campos-cidade”. Trata-se de espacialidades oriundas da segregação e da desterritorialização que, sob um olhar etnográfico, revelam conformações únicas, marcadas por tensões e dinâmicas próprias que conduziram o autor a pensar a cidade a partir das margens e a analisar distintos modos de “fazer cidade”.

Filho do filósofo Maurice Agier e da pedagoga Marie-Thérèse Agier, Michel Agier formou-se em filosofia (1970) e doutorou-se em sociologia (1982) com a tese Commerce et sociabilité: les négociants soudanais du quartier Zongo de Lomé - Togo na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Entre 2016-2019, coordenou o projeto Babels: la ville comme frontière, apoiado pela Agência Nacional de Pesquisa da França (ANR), onde analisava situações de fronteira na Europa e Mediterrâneo. Atualmente é directeur d’études na École des Hautes Études en Sciences Sociales, membro do Centre d’Étude des Mouvements Sociaux (CEMS) e directeur de recherche émérite no Institut de Recherches pour le Développement (IRD), Paris.

As pesquisas que amparam o seu doutorado foram realizadas com comerciantes, estrangeiros e migrantes, entre 1978 e 1979, na África Ocidental, especificamente no bairro étnico Nouveau Zongo, na cidade de Lomé (Togo) e, de modo mais breve, na aldeia Bipindi na cidade de Duala (Camarões), em 1980. O contexto político e social infletiu diretamente na pesquisa realizada no Togo; em novembro de 1977, o governo militar de Étienne Eyadéma, que governou o país entre 1967 e  2005, engendrou a expulsão forçada dos habitantes do lugar, dando início a um processo de reurbanização. Foi nesse território em disputa que o material etnográfico ganhou forma, pautando-se na produção de uma etnografia das dinâmicas do setor informal e na investigação de como as atividades comerciais incidiram sobre a organização econômica e sobre as relações sociais. O antropólogo percorreu as redes de sociabilidade dos moradores nos locais de trabalho, também os vínculos parentais e as relações de compadrio, além de analisar situações cotidianas que, a seu ver, dão forma aos modos de vida.
AGIER, Michel. Anthropologie du carnaval : la ville, la fête et l’Afrique à Bahia, Marseille, Paris, Éditions Parèntheses, 2000. Divulgação.

Na década de 1990, Agier desloca-se para a América Latina (Brasil e Colômbia) de modo a aprofundar as pesquisas sobre as relações entre cultura, etnicidade e territorialidade, observadas nos trabalhos anteriores. Em Salvador sua etnografia transcorreu no bairro da Liberdade, onde residiu entre 1990 e 1996; aí esteve atento a temas relacionados ao cotidiano: “cidade familiar” “etnologia das vielas”, partidas de futebol amador (babas), relações raciais e identitárias no bloco afro Ilê Aiyê. Tais investigações deram lugar a Anthropologie du carnaval. La ville, la fête et l'Afrique à Bahia (2000) e a L'invention de la ville: banlieues, townships, invasions et favelas (1999), livro no qual se aproxima daqueles que residem em territorialidades marginais como por exemplo: moradores das áreas suburbanas da França (banlieus), moradores de áreas historicamente associadas ao apartheid na África do Sul (townships) e moradores de áreas periféricas ou informais no Brasil (favelas). Segundo Agier os residentes destas localidades reconstroem o conceito de cidade pelas margens, a partir de invenções ordinárias como por exemplo: criação de economias informais, organização comunitária, reapropriação de espaços públicos, criação de redes de solidariedade, autoconstrução de moradias, além de expressões culturais e artísticas. Na obra de 1999 o autor usa o termo “citadino” para designar aquele que habita e faz uso da cidade e de seus espaços para além da lógica de uso esperada por autoridades locais e planejadores urbanos. O citadino engendra modos de usar, desenvolve funções e apropriações criativas do espaço, encarando a urbe como um local de construção de identidades e pertenças, mediante experiências quem fogem à previsibilidade e ao uso habitual.

Na Colômbia dirige-se às cidades de Tumaco e Cali, que conheceram deslocamentos forçados no período pós 1997 em razão da violência em torno do narcotráfico (e da atuação do Cartel de Cali, criado neste momento). Face a este contexto, Agier irá se deter nas experiências de deslocamento e reconstrução identitária de populações afro-colombianas, o que resultou na publicação de Tumaco: haciendo ciudad. Historia, identidad y cultura (1999), em colaboração com pesquisadores locais. O tema do deslocamento persiste enquanto Agier acompanha o surgimento de campos de refugiados na Europa, no norte da África e na Palestina – pesquisas que originaram diversas publicações. Em The Stranger as my guest: a critical anthropology of hospitality (2021), defende a necessidade de uma vida comum pautada na hospitalidade, no gesto do encontro e na troca com o outro como direitos universais. Contesta a vinculação do medo, da hostilidade e do perigo à figura do estrangeiro, do imigrante, e/ou do refugiado, que por esses atributos negativos - alimentados por políticas migratórias restritivas e xenofóbicas - convertem-se em “indesejáveis”. 

Ilê Aiyê: a fábrica do mundo afro (2024) é a mais recente obra traduzida para o português de Michel Agier, versão condensada, revista e atualizada do livro, Anthropologie du carnaval (2000). Nela o autor retoma seu acervo de entrevistas, relatos de vida, documentos e dados coletados em campo durante a pesquisa anterior em Salvador, guiado agora por novo objetivo, qual seja: apresentar o mundo negro projetado pelo bloco afro, um movimento cultural e social, responsável não só pela reinvenção do carnaval baiano, mas por permitir lançar um novo olhar sobre as relações raciais no Brasil. Outros títulos do antropólogo disponíveis em português são: Encontros etnográficos (tradução de 2015 do livro L'anthropologie à l'épreuve du piège identitaire) – que traz reflexões sobre a pesquisa etnográfica (o papel do antropólogo, a ética na pesquisa, a escrita etnográfica entre outros) - e Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos (tradução de 2011 de Esquisses d'une anthropologie de la ville: lieux, situations, mouvements), no qual articula as noções de rede, situação e região, que dialogam com os estudos urbanos da Escola de Chicago, especialmente com a ideia de “região moral” de Robert Park (1864-1944) e com os africanistas da Escola de Manchester – especialmente com Max Gluckman (1911-1975) e Clyde Mitchell (1918-1955), que defendem uma “análise situacional”, contextual e política, de feitio etnográfico, em oposição às abordagens estruturalistas e marxistas. Outro autor importante para Agier é Marc Augé (1935-2023), sobretudo o conceito de “não lugar”, pensado como lócus do anonimato e de ausência de identidade (por exemplo, aeroportos, hotéis, autoestradas etc.). Agier propõe uma leitura crítica desse conceito alegando que se tais espaços, em geral de passagem, são impessoais e marcados por relações efêmeras, eles não são destituídos de significado social, comportando produções identitárias e conhecendo resistências de populações marginalizadas, como refugiados e migrantes, que neles transitam.

Em Portugal, e no Brasil mais especificamente, suas ideias vêm repercutindo nos estudos da cidade, convidando-os a colocar o foco de atenção na potência criativa das margens, e a reforçar a ideia de que as urbes estão em contínuo processo de feitura. Tais reflexões vem influenciando as pesquisas da antropóloga portuguesa Graça Índias Cordeiro (1956-) tradutora de Antropologia da cidade (2011), e dos brasileiros José Guilherme Magnani (1944-) e Heitor Frúgoli Jr. , além de gerações mais jovens que continuam a pesquisar cidades na antropologia, no urbanismo, no campo das políticas humanitárias internacionais e em áreas afins.

Como citar este verbete:
ANDRADE, Jéssica de Souza. “Michel Agier”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/michel-agier

ISSN: 2676-038X (online)

Acesse aqui a versão em PDF ]

a
date of publication
26/02/2025
authors

Jéssica de Souza Andrade

bibliography

AGIER, Michel, Commerce et sociabilité. Les négociants soudanais du quartier Zongo de Lomé, Paris, IRD, 1983

AGIER, Michel, L'invention de la ville : banlieues, townships, invasions et favelas, Paris, Éditions des Archives Contemporaines, 1999

AGIER, Michel, ÁLVAREZ, Manuela, HOFFMANN, Odile & RESTREPO, Eduardo, Tumaco: Haciendo ciudad, historia, identidad y cultura, Bogotá, ICANH, IRD, 1999

AGIER, Michel. Anthropologie du carnaval : la ville, la fête et l’Afrique à Bahia, Marseille, Paris, Éditions Parèntheses, 2000

AGIER, Michel, “Distúrbios identitários em tempos de globalização”, Mana, n. 2, vol. 7, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2001, p. 7-33

AGIER, Michel, On the margins of the world: the refugee experience today, Cambridge, Polity Press, 2008

AGIER, Michel, Esquisses d'une anthropologie de la ville: lieux, situations, mouvements, Louvain-la-Neuve, Academia-Bruylant, 2009 (Trad. Bras. Graça Índias Cordeiro. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 2011)

AGIER, Michel, La condition cosmopolite : L'anthropologie à l'épreuve du piège identitaire, Paris, La Découverte, 2013 (Trad. Bras. Bruno César Cavalcanti, Maria Stela Torres B. Lameiras e Rachel Rocha de A. Barros. São Paulo, Editora UNESP, 2015)

AGIER, Michel, “Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro”, Mana, v. 21, n. 3, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2015, p. 483-498

AGIER, Michel, The stranger as my guest: a critical anthropology of hospitality, Cambridge, Polity Press, 2021

AGIER, Michel, “Michel Agier: as duas mortes e a vida dos/as indesejáveis” [Palestra online], São Paulo, Universidade de São Paulo, Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade, 07 nov. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9iYDebJXbnI&t=18s. Acesso em: 08 ago. 2024.

AGIER, Michel, Ilê Aiyê: a fábrica do mundo afro. Tradução de Mirella Botaro e Raquel Camargo. Fotos de Milton Gurán. São Paulo, Editora 34, 2024 

ALCÂNTARA, Maurício, TOJI, Simone, BERSANI, Ana Elisa & AGIER, Michel, “Do medo dos outros, da hospitalidade e da necessidade de uma cosmopolítica da vida em comum: uma entrevista com Michel Agier”, Ponto Urbe, v. 31, n. 1, São Paulo, 2024, p. 1-17

AUGÉ, Marc, Non-Lieux : Introduction à une anthropologie de la surmodernité, Paris, Seuil, 1992 (Trad. Bras. Maria Lúcia Pereira. Campinas, Papirus, 1994)

FERNANDES JUNIOR, João Gilberto Belvel, “Resenha de The Stranger as My Guest: A Critical Anthropology of Hospitality”, REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 30, n. 64, Brasília, PUC-DF, 2022, p. 257-259

FRÚGOLI Jr., Heitor, ADERALDO, Guilhermo, DAMASCENO, Janaína, OLIVEIRA, Isabela & FAZZIONI, Natália, “As cidades da antropologia: entrevista com Michel Agier”, Revista de Antropologia, v. 53, n. 2, São Paulo, USP, 2010, p. 811-842

GLUCKMAN, Max, Custom and Conflict in Africa, Oxford, Blackwell, 1955

JORION, Paul, ATTI, Marna & AGIER, Michel, “Commerce et sociabilité. Les négociants soudanais du quartier zongo de Lomé (Togo)”, L'Homme, 1987, tome 27, n°101, p. 168-169

MITCHELL, Clyde, The Kalela Dance: Aspects of Social Relationships among Urban Africans in Northern Rhodesia, Manchester, Manchester University Press, 1956 

PARK, Robert, “The Urban Community as a Spatial Pattern and a Moral Order” In: Robert Park, E. Burgess, R. McKenzie (eds.), The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, Chicago, TUCP, 1925 (Trad. Marcos Hélio de Souza. São Paulo, Martins Fontes, 1948)