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A invenção do cotidiano

O livro A invenção do cotidiano (1980) do historiador e antropólogo francês Michel de Certeau (1924-1986) desdobra-se em dois tomos: Artes de fazer (volume 1) e Habitar, cozinhar (volume 2), este escrito com Luce Giard, historiadora das ciências e da religião, e Pierre Mayol, aluno de Certeau. A obra é fruto de um trabalho coletivo realizado entre 1974 e 1977, a partir de uma encomenda do Ministério da Cultura francês interessado em questões de cultura e de sociedade, e sobre as quais Certeau trabalhara em obras precedentes, por exemplo em La culture au pluriel (1974). À proposição feita, Certeau e equipe respondem pela análise das práticas culturais cotidianas, tema a partir do qual desenvolvem uma abordagem do consumo cultural, pensado como dimensão criadora e inventiva.

Pieter Brueghel, o Jovem, "Feira numa vila (festival em honra a Santo Huberto e Santo Antônio", pintura, óleo sobre painel, 1564-1638. Auckland Art Gallery. Google Art Project. Imagem em domínio público.

No primeiro e mais difundido volume da obra, em função de pesquisa empírica detida, o autor esboça uma reflexão sobre as práticas ordinárias, aproximando-as dos “modos de fazer” das pessoas comuns, atento às diversas maneiras pelas quais fazem uso de regras e convenções impostas por uma ordem social e economicamente dominante. Para isto, escolhe para análise campos corriqueiros de ação: o espaço, a língua, a crença, entre outros. Trata, por exemplo, do caminhar pela cidade como um modo de “praticar o espaço” e apropriar-se do traçado urbano, não previsto pelos planos urbanísticos; examina também relatos de milagres entre os lavradores de Pernambuco, que, ao mesmo tempo em que partem de preceitos do catolicismo tradicional, produzem “modos de crer” diversos; ou, ainda, do ato corriqueiro de ler, considerado como uma forma de apropriação do texto pelo leitor, que o realiza segundo seus códigos próprios de percepção e interesses. O segundo volume da obra, por sua vez, visa “traçar as interligações de uma cotidianidade concreta” por meio de vasto material etnográfico, estatístico, cartográfico e de entrevistas, reunido por Pierre Mayol que investiga as práticas do habitar no então bairro operário de Croix-Rousse em Lyon, e por Luce Giard, que se detém sobre as práticas de cozinhar.

A invenção do cotidiano ancora-se em ideias e procedimentos provenientes de diversos campos de conhecimento: história, teologia, educação, psicanálise, filosofia, antropologia e linguística. Michel de Certeau aponta como suas principais inspirações a psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939); a filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e John Langshaw Austin (1911-1960); a antropologia de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e a filosofia de Immanuel Kant (1724-1804). Ao mesmo tempo, estabelece interlocuções fundamentais com Michel Foucault (1926-1984) e Pierre Bourdieu (1930-2002), a partir das quais delimita o campo das práticas; e com Marcel Detienne (1935) e Jean-Pierre Vernant (1914-2007) com quem dialoga para definir sua noção de tática. Duas obras de Foucault e Bourdieu são especialmente importantes nesses diálogos: Vigiar e punir (1975), na qual Foucault relata a emergência de um novo tipo de controle sobre os sujeitos e seus corpos, sintetizada pelo modelo do panóptico e Esboço de uma teoria da prática (1972), na qual Bourdieu analisa instituições das sociedades kabila do norte da Argélia. Problematizando o olhar centrado exclusivamente nos procedimentos de controle (Foucault) e na ideia de determinação do habitus (Bourdieu), Certeau coloca o seu foco, não na imposição de padrões de comportamento, mas nos diferentes modos pelos quais as práticas cotidianas podem subverter imposições e controles diversos. A distinção entre “estratégia” e “tática” é central para o desenvolvimento da noção de prática cotidiana do autor, mais próxima do segundo termo. A ideia de tática inspira-se na análise que Detienne e Vernant realizam sobre a noção grega antiga de métis, forma astuciosa ou ardilosa de inteligência; trata-se formas de saber e conhecimentos práticos, que dependem de uma ocasião, ou momento oportuno (kairós) para serem colocados em ação.

A amplitude de inspirações teóricas em A invenção do cotidiano e os alcances da abordagem original da vida social e da cultura que apresenta fizeram da obra uma referência para estudos nas áreas de história, antropologia, educação, literatura, estudos urbanos e culturais, entre outros.

Como citar este verbete:
PEREIRA, Bruno Ribeiro da Silva; MACHINI, Mariana Luiza Fiocco. “A invenção do cotidiano”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/invenção-do-cotidiano>

ISSN: 2676-038X (online)

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I
date of publication
02/05/2016
authors

Bruno Ribeiro da Silva Pereira e Mariana Luiza Fiocco Machini

bibliography

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