A obra El primer nueva corónica y buen gobierno [A primeira nova crônica e bom governo] (c. 1616), do cronista Felipe Guamán Poma de Ayala (c. 1534-1616), intelectual indígena pertencente ao povo Quechua que viveu nos Andes do atual território peruano no final do século XVI e início do século XVII, é uma obra fundamental, embora pouco conhecida, para a história latino-americana e para uma série de debates antropológicos contemporâneos comprometidos com a crítica das fontes eurocêntricas e antropocêntricas do período colonial. Não havia notícias deste importante registro até 1908, quando Richard Pietschmann (1851-1923), então diretor da Biblioteca de Göttingen, na Alemanha, encontrou o manuscrito abandonado em uma das bibliotecas mais antigas da Europa, a Biblioteca Real da Dinamarca, em Copenhague.
Em 1936, um fac-símile do manuscrito, com adaptações e modificações pontuais, foi tornado público pelo antropólogo francês Paul Rivet (1876-1958). Em 2001, a Biblioteca Real da Dinamarca disponibilizou os arquivos completos, transcritos a partir das suas línguas originais e traduzidos ao inglês, em uma plataforma digital de acesso aberto. A obra, que conta com 1.180 páginas e 397 desenhos, apresenta uma série de materiais inéditos que documentam práticas rituais, sistemas de parentesco, modos de organização política, narrativas cosmogônicas e descrições etnográficas minuciosas de diversos povos andinos, durante o primeiro momento da invasão das Américas. Ela está dividida em duas partes: a primeira cobre a Nueva corónica - descrevendo a jornada dos povos andinos desde os míticos Adão e Eva até o desenvolvimento do Tawantinsuyu, o Estado Inca e a invasão espanhola. Nesse percurso narrativo, observa-se como o autor dialoga com o repertório do cristianismo, apropriando-se de algumas de suas categorias para reinterpretar a história andina. Já a segunda parte da obra concentra-se na ideia do buen gobierno, que consiste em uma descrição das formas de vida do povo Inca. Ao informar o Rei Felipe III de fatos locais, o autor realiza observações críticas sobre comportamentos de figuras coloniais-chave da época, como padres e encomenderos (responsáveis pela administração de indígenas submetidos ao trabalho forçado sob o regime da encomienda).
As representações visuais que compõem a obra vinculam-se a uma concepção de mundo centrada nos saberes andinos: padrões geométricos rigorosos, simetria, complementariedade, integração de texto e imagem, além do uso da ekphrasis, técnica da escrita de textos em diálogo direto com o desenho de imagens. Os temas que aborda são variados: contemplam desde a centralidade da comunicação entre seres humanos e não humanos passando por uma classificação sociocultural que inclui marcadores como idade, gênero, classe e raça-etnicidade, contando inclusive com registros de deficiências físicas e outras tantas particularidades e contrastes da heterogênea sociedade incaica. Além disso, estão registrados os ciclos do calendário agrícola e das atividades sociais e rituais a ele vinculadas, desde a semeadura até a colheita, junto a uma profusa de cenas chaves da história da conquista espanhola desde a perspectiva nativa. O manuscrito foi registrado nas línguas quechua, aymara e espanhol, com a eventual adição de palavras e expressões em latim e hebraico pelo próprio autor no manuscrito original. Esse plurilinguismo traz à tona um exercício complexo de tradução cultural, linguística e epistemológica: as palavras se entrelaçam às representações visuais em uma espécie de hibridismo semiótico: desenhos de rainhas, reis, chaskis (mensageiros), astrólogos, poetas e servos, agricultores e pessoas escravizadas, que retratam, em detalhes, o mundo pré-invasão europeia.
A obra permite apreender o retrato de um tempo-espaço, composto por uma série de seres e coisas que nele figuram como sujeitos, por exemplo os quipus - dispositivos de lã amarrada inca elaborados para contar números e narrar histórias; teares verticais; rituais funerários; apus (montanhas sagradas); divindades, que expressam emoções. O sol e a lua são esboçados com traços antropomórficos e os animais, falantes, têm seus sons vocais transcritos. Quando da apresentação do calendário agrícola, por sua vez, várias cenas registram plantas de coca e milho, assim como cães, pássaros e lhamas, todos estes interagindo com seres humanos em uma teia de relações. Além disso, um atlas do mundo mostra Cusco - a capital Inca, “umbigo do mundo” - em seu centro.
El primer nueva corónica auxilia a redefinir certa narrativa histórica consagrada sobre o Peru e a América Latina; ela fornece outros pontos de vista, figurando como contraponto aos relatos de autores contemporâneos a Poma de Ayala, como Pedro Cieza de León (1518-1554), Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés (1478-1557), Hans Staden (1525-1579) e Jean de Léry (1534-1613), que produziram crônicas a partir de percepções europeias, com discursos sobre o Outro modelados pelo ideário iluminista. A perspectiva autoral e o conhecimento científico codificados na Nueva corónica articulam-se às descrições nativas de animais, plantas, espíritos e ancestrais, delineando uma visão alternativa às concepções ocidentais das naturezas e culturas do mundo, além de fornecerem outra mirada sobre os conflitos civilizatórios e sobre as transformações históricas que perpassavam a sociedade andina naquele contexto.
A obra é comparável a outras produzidas por autores indígenas da época, como é o caso do Códice florentino, realizado entre 1540 e 1585, pouco depois da conquista de México-Tenochtitlan. Elaborada com ampla participação de tlacuilos (escribas e ilustradores nahuas) sob a direção e edição de frei Bernardino de Sahagún, o Códice contém ao redor de 2.500 imagens, e é considerado uma fonte de informação fidedigna sobre cultura mexica, sobre o Império Asteca e sobre a conquista do México. Contudo, ao contrário do registro pictográfico revisado pelo padre europeu Sahagún, a Nueva corónica apresenta um raro exemplo de escrita nativa que manifesta, de forma singular, a voz e o ponto de vista de um intelectual indígena em contexto colonial, desafiando estereótipos sobre a passividade, ignorância, pobreza e decadência historicamente impostos aos povos colonizados.
Devido ao reconhecimento de seu significado antropológico, histórico e cultural, e da sua singularidade como testemunho visual e textual da expressão indígena no período colonial - além de sua relevância como fonte prístina para o entendimento das dinâmicas da colonização europeia nas Américas - o manuscrito passou a integrar, em 2007, o Registro da Memória do Mundo da UNESCO. As narrativas de Poma de Ayala podem ser compreendidas como um dispositivo epistêmico e político que orienta a produção de visões plurais sobre a ciência e a cultura na América Latina. A obra configura uma referência documental incontornável para a valorização dos saberes indígenas americanos. Em um contexto no qual uma crescente literatura crítica tem se dedicado ao deslocamento de perspectivas eurocêntricas, à revisão do cânone e à proposição de estratégias descolonizadoras na antropologia, El primer nueva corónica y buen gobierno mostra-se uma contribuição potente à tarefa de construção de outras histórias e genealogias culturais, intelectuais e políticas.
Como citar este verbete:
BÖSCHEMEIER, Ana Gretel Echazú. “El primer nueva corónica y buen gobierno”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/nueva-coronica
ISSN: 2676-038X (online)
Ana Gretel Echazú Böschemeier
ADORNO, Rolena, Writing and resistance in colonial Peru, Austin, TX, University of Texas Press, 1986
CÓDICE FLORENTINO. Versão digital. The Getty Research Institute. Disponível em: https://florentinecodex.getty.edu/es. Acesso em: 15 jul. 2025
ECHAZÚ BÖSCHEMEIER, Ana Gretel, QUISPE-AGNOLI, Rocío & GRECO, Lucrecia. “Waman Poma de Ayala, um autor indígena do século XVII: questionando antropocentrismos no colonialoceno”, TECCOGS, Digital Magazine on Cognitive Technologies, São Paulo, PUC, 2021
ECHAZÚ BÖSCHEMEIER, Ana Gretel, “Crítica do cânone na antropologia”, Palestra apresentada no Café Filosófico, TV UFRN, 24 set. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5_8SPPKbc30. Acesso em: 15 jul. 2025.
ERIKSEN, Thomas & NIELSEN, Finn, A history of anthropology, London, Pluto Press, 2001
POMA DE AYALA, Felipe Guamán (1616), Guaman Poma's site. Copenhague, Royal Library, 2001. Disponível em: http://www.kb.dk/permalink/2006/poma/info/en/frontpage.htm. Acesso em: 15 jul. 2025.
QUISPE-AGNOLI, Rocío, “Escribirlo es nunca acabar: cuatrocientos cinco años de lecturas y silencios de una Opera Aperta colonial andina”, Letras, n. 91, n. 133, Lima, 2020, p. 5-34
UNESCO - Memory of the World Register, El Primer Nueva Coronica y Buen Gobierno (Ref N° 2006-28), 2006. Disponível em: https://es.unesco.org/sites/default/files/el_primer_nueva_coronica_y_buen_gobierno_nomination_form.pdf. Acesso em: 30 abr. 2024

