A prece (1909) é um fragmento da tese de doutorado inacabada do antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950), na qual ele argumenta que o fenômeno constitui um dos elementos centrais da vida religiosa, de maneira que uma análise da evolução das formas da oração permitiria demonstrar o processo de evolução da religião em geral.
O estudo da prece, nos termos do autor, segue uma metodologia de tipo histórico-genético, em que a análise se inicia a partir de formas consideradas mais elementares, para chegar até formas ditas mais complexas. O objetivo é mostrar como as segundas surgiram a partir das primeiras, descrevendo a ordem de sua gênese por meio de uma sucessão histórica. Ao apresentar a metodologia proposta, Mauss faz uma comparação com outra possibilidade metodológica, de tipo esquemático, utilizada anteriormente com Henri Hubert (1872-1927) no ensaio Sobre a natureza e a função do sacrifício (1899), e defende que os dois métodos são igualmente válidos. No entanto, em A prece ele opta pelo primeiro tipo, considerado mais adequado ao seu objetivo, que é estudar as origens da prece e seus processos de evolução a partir da análise do material etnográfico de sociedades australianas, consideradas então as mais primitivas. Tratar de evolução não significa explicar o complexo pelo simples, diz ele, já que as formas rudimentares não são mais simples do que as formas tidas como mais complexas; trata-se, isto sim, de complexidades diferentes.
A prece, neste ensaio, é considerada um fenômeno religioso, ou mesmo o fragmento de uma religião, sendo esta definida como um sistema de crenças e práticas coletivas dirigidas a seres sagrados reconhecidos pela tradição. Portanto, ao considerar a prece como narrativa religiosa, produto do esforço acumulado dos homens e gerações, o autor afirma que ela é antes de tudo um fenômeno social, pois mesmo quando o crente seleciona a seu modo os termos da oração, naquilo que diz ou pensa, nada mais faz do que recorrer a frases consagradas pela tradição. A prece é social não só devido ao conteúdo, mas também à forma, uma vez que ela não existe fora do ritual. Nesse sentido, o autor argumenta que não é na prece individual que está o princípio da oração coletiva; ao contrário, é no caráter coletivo que se encontra o princípio da oração individual. Embora não recuse a oposição indivíduo/sociedade, cara à escola sociológica francesa, o autor mostra que a prece associa as duas dimensões: sendo um fenômeno social, ela é também, e em certo grau, um fenômeno individual, pois cada indivíduo escolhe o momento em que reza e, no limite, cria a sua prece.
Situando o conceito em relação a outros, previamente definidos, Mauss classifica-o como rito, na medida em que a prece é, segundo ele, ato tradicional. A noção de rito, por sua vez, é categorizada a partir da distinção entre ritos mágicos e religiosos. Os ritos mágicos são geralmente realizados por feiticeiros e possuem eficácia por si sós; são ainda de tipo determinista, uma vez que seus efeitos são imediatos. Já os religiosos costumam ser realizados por sacerdotes, reivindicando a ação de seres sagrados; sua eficácia é, portanto, contingente com relação à intervenção divina. O autor define a prece como um ritual religioso distinto dos encantamentos mágicos, na medida em que busca a intervenção de forças sagradas em um determinado contexto, enquanto o encantamento, possuindo caráter mágico, tem eficácia imediata. Mas tal diferenciação não é rígida e definitiva: de acordo com os exemplos etnográficos apresentados, há uma gama de variações e graus de transição entre ritos mágicos e religiosos, entre encantamentos e preces. O autor distingue ainda os ritos religiosos em manuais e orais: os primeiros consistem no uso das expressões corporais e deslocamento de objetos; os segundos são locuções rituais.
Ao conceber a palavra como ato que produz efeito, e que visa uma determinada finalidade, o ensaio de Mauss é precursor ao trazer ideia de que o ritual pode ser pensado a partir da linguagem, considerada como portadora de eficácia. A prece associa assim ação e pensamento, uma vez que participa ao mesmo tempo da natureza do rito e da natureza da crença: rito, pois é ato realizado tendo em vista coisas sagradas; crença, na medida em que toda oração exprime um mínimo de ideias e sentimentos religiosos. Por meio da prece o autor observa, então, a relação entre rito e mito, afirmando que o rito contém crenças específicas que o orientam e que lhe conferem legitimidade, enquanto que o mito somente adquire sentido na prática através dos rituais.
Dentre os diversos rendimentos teóricos que a análise maussiana da prece oferece, é central a sugestão do autor de que é possível por meio deste fenômeno, associar, sem recusar, diferentes oposições como mito/rito, ação/pensamento e sociedade/indivíduo. Mesmo inacabada, A prece é um ensaio de caráter programático em que Mauss lança diversas contribuições para os estudos voltados à teoria do ritual e da linguagem.
Como citar este verbete:
HAIBARA, Alice & OLIVEIRA, Maria Izabel Zanzotti de. “A prece”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/prece>
ISSN: 2676-038X (online)
Alice Haibara e Maria Izabel Zanzotti de Oliveira
CABRAL, João de Pina, “A prece revisitada: comemorando a obra inacabada de Marcel Mauss”, Religião e sociedade, vol. 29, n. 2, Rio de Janeiro, 2009, p. 13-28
Mauss, Marcel, La prière, Paris, Félix Alcan Editor, 1909 (Trad. Bras. Luiz João Gaio e Jacob Ginzburg. São Paulo, Perspectiva, 2001)
MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri, “Essai sur la nature et la fonction du sacrifice”, Année Sociologique, v. 2, 1899 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2005)