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Antropologia das infraestruturas

A relação entre práticas sociais e objetos materiais é tema recorrente na antropologia. A partir da década de 1990, com a emergência dos campos interdisciplinares dos estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT) e da antropologia da ciência e da tecnologia (ACT), infraestruturas como linhas de energia, estradas e sistemas de informação, que ganhavam cada vez mais proeminência na esfera pública, se tornam também objetos de estudo relevantes para a pesquisa social. No ano de 1996, a antropóloga Susan Leigh Star (1954-2010) e a cientista da computação Karen Ruhleder (1962-) publicaram um artigo seminal, “Steps toward an ecology of infrastructure”, perguntando-se: “o que é uma infraestrutura?”. Concluíram que as infraestruturas não são uma coisa em si, mas um conjunto de relações entre tecnologia e formas de organização social. A antropologia das infraestruturas foi, inicialmente, o estudo das relações heterogêneas que constituem, estabilizam e mantém em operação as infraestruturas. Pesquisas etnográficas passaram a abordar as infraestruturas como articulações de materialidades com atores institucionais, regimes legais, políticas, práticas de conhecimento e cultura, que estão em constante formação através do espaço e do tempo.

Percy William Justyne. Construção do Metrô de Londres. Ilustração. The Illustrated London News, 1863, p. 99. Imagem em domínio público.Ainda na década de 1990, o historiador e filósofo Geoffrey Bowker (1953-) contribuiu conceitualmente para o desenvolvimento desses estudos ao propor a “inversão infraestrutural” (infrastructural inversion) como abordagem que descreve as infraestruturas não apenas como pano de fundo dos motivos sociais, culturais ou políticos podiam ser decodificados, mas como “uma segunda natureza”, ou seja, como um conjunto de formas representacionais com as quais compreendemos e agimos no tempo e no espaço. Para Bowker, dirigir o olhar às infraestruturas permite reconhecer esses “elos perdidos” entre sociedade, natureza (o que ele designa como primeira natureza) e formas de representação do tempo e espaço (segunda natureza), presentes nas organizações sociais.

Fazendo um balanço das pesquisas em infraestruturas ao longo do início do século XXI, o antropólogo Brian Larkin (1964-) destacou que talvez a abordagem mais dinâmica para estudar infraestruturas na antropologia atual tenha surgido por meio do conceito de “tecnopolítica”. Infraestruturas são formas eficientes de materializar categorias de poder, expressar visões políticas e exercer formas de governo. Desde a célebre obra de Michel Foucault (1926-1984), Vigiar e punir (1975) que chama atenção para a figura arquitetural do “panóptico” – lugar de onde se pode ver, tudo e todos, sem ser visto, usado como metáfora para designar o controle e a imposição de determinados comportamentos –, as ciências sociais compreendem que formas arquitetônicas encarnam uma concepção específica de organização dos corpos para exercer uma forma de “tecnopolítica” disciplinar.

A antropóloga Antina von Schnitzler, por sua vez, ressalta que, para existir como projeto político, o apartheid dependeu de modalidades de poder “infraestruturadas”. Nas áreas urbanas da África do Sul, os residentes negros eram considerados moradores temporários cuja residência permanente era imaginada nas áreas rurais delimitadas nos chamados Bantustões. As infraestruturas nas áreas urbanas se tornaram símbolos, condutores e formas de poder no apartheid. A segregação no transporte urbano, as placas em locais públicos que limitavam a entrada de negros (“whites only”) são exemplos claros de como as infraestruturas servem para que categorias de poder sejam constituídas de maneira material e simbólica.

Outro exemplo das infraestruturas como “tecnopolíticas” são os estudos do sociólogo Jean Miguel sobre as infraestruturas de modelagem climática no Brasil, que indicam como estas constituem pragmáticas de governo das mudanças climáticas. Ao explorar a dimensão política dos processos de produção das infraestruturas do conhecimento climático e a maneira como essas infraestruturas de simulação e previsão climática são politicamente valorizadas, o autor identificou iniciativas de grupos científicos ligados ao Estado brasileiro que, por um lado, buscavam incluir trabalhos científicos nacionais no IPCC pretendendo com isso superar condições desiguais no sistema de ciência internacional; por outro lado, pretendiam desenvolver prognósticos climáticos regionalizados como uma ferramenta para o planejamento da política climática nacional, criando assim fundamentos científicos para práticas governamentais do Estado em escala local em questões relacionadas à agricultura, a fome, a saúde e a vida nos centros urbanos. O autor demonstra que as infraestruturas de modelagem climática traduzem as mudanças climáticas em alvos de políticas públicas, criando uma forma de governamentalidade climática do Estado brasileiro baseada na antecipação dos riscos.

Outra contribuição importante para o desenvolvimento da área foi a atenção concedida aos imaginários e aspirações que se constituem com as infraestruturas. Como demonstra o antropólogo Nikhil Anand e seus colaboradores no livro The promise of infrastructure (2018), os discursos institucionais daqueles que desenham, financiam e gerenciam as infraestruturas (como hidrelétricas ou estradas pavimentadas) aparecem frequentemente em termos de modernizar, tornar eficiente, reduzir custos e proporcionar bem-estar à população. Tais promessas de progresso e desenvolvimento econômico nascem aliadas aos projetos de infraestruturas, porém não necessariamente se concretizam de fato. É o caso da infraestrutura de saneamento da cidade indiana de Mumbai, descrita por Anand, distribuída de maneira desigual em seu território. Ao invés de cumprir a promessa de modernização do acesso à água, essa infraestrutura acentuou as desigualdades socioeconômicas locais.  

A essas formas de imaginação política das infraestruturas se somam também sua própria constituição material e estética. Enquanto algumas permanecem relativamente invisíveis em situações de estabilidade – como a rede de esgoto e de energia elétrica – outras são construídas para causar admiração (estádios de futebol, aeroportos ou redes de transporte sofisticadas etc.). Um exemplo dessa função estética das infraestruturas pode ser encontrado na construção da cidade de Brasília, cujo projeto foi além da pretendida função de ser o centro político do país, mas buscou representar os ideais de “ordem e progresso” criando um imaginário associado à modernidade através da materialidade das formas e do planejamento urbano. Esses exemplos indicam, portanto, que existem múltiplas dimensões das infraestruturas que podem ser exploradas por meio dos estudos etnográficos. 

Mais recentemente, sobretudo na última década, muitos estudos têm se dedicado à investigação do modo como as infraestruturas modificam ecossistemas e contribuem para crises, como a das mudanças climáticas. Ao mesmo tempo que são apresentadas como solução técnica, as infraestruturas, elas próprias, constituem um problema sempre presente. Elas se tornam um campo privilegiado para a investigação das relações entre tecnologia e meio ambiente a partir de uma crítica da precedência do ambiente “natural” em relação ao ambiente construído. Nessa direção, o antropólogo Kregg Hetherington diz que não se pode distinguir a história ambiental de uma história das infraestruturas, pois ambas são coproduzidas, sobretudo no Antropoceno, tempo geológico marcado pela interferência humana no meio ambiente em escala planetária.

Ao elaborar o conceito de infraestrutura ao mesmo tempo como ferramenta teórica e problema empírico, a antropologia das infraestruturas oferece uma perspectiva que chama atenção à forma como coletivos organizam a vida por meio de relações tecnológicas, políticas e ambientais que são continuamente criadas pelo engajamento de entidades humanas e não humanas. Nesse sentido, o Antropoceno converte as infraestruturas em um lócus de análise central para pensar as sobreposições de crises vividas na atualidade. Ao sugerirem que as infraestruturas podem ser pensadas como “experimentações ontológicas”, isto é, como locais de constante encontro e produção de mundos por diferentes entes, Casper Bruun Jensen e Atsuro Morita indicam um caminho possível para rastrear transformações e conflitos, além de delinear os contornos de ontologias emergentes – novas práticas sócio-materiais criadas a partir desses encontros. Com isso, é possível se perguntar com quais criaturas vivemos e como podemos viver de maneira diferente, ponto de partida central de uma política não humanista. Isso exige que inventemos novas formas de perceber nossa relação com o mundo e novos modos de fazer política.

As infraestruturas são, portanto, sítios importantes do trabalho antropológico e do esforço mais amplo de compreender o advento das múltiplas crises da modernidade. A antropologia tem contribuído conceitual e empiricamente para a compreensão das sutilezas materiais e imateriais das infraestruturas indo além das categorias tradicionais da sociologia e da tecnologia.

Como citar este verbete:

MIGUEL, Jean Carlos Hochsprung & FIGUEIREDO, Felipe. 2021. "Antropologia das infraestruturas". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/subcampos/antropologia-das-infraestruturas

ISSN: 2676-038X (online)

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I
data de publicação
14/12/2021
autoria

 Jean Carlos Hochsprung Miguel e Felipe Figueiredo

bibliografia

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