autor
Bruno Latour

Bruno Latour (1947-2022) foi um filósofo, sociólogo e antropólogo francês, conhecido por seus estudos de ciência, tecnologia e sociedade; propôs uma “antropologia simétrica” da modernidade de modo a aproximar metodologicamente etnografias realizadas em sociedades ditas tradicionais e aquelas empreendidas em locais de produção científica, como os laboratórios. Latour propôs também uma descrição simétrica dos modos de ação de seres humanos e não humanos na composição do mundo – o que o tornou um reconhecido pensador ecológico. Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica (1991) apresenta uma abordagem etnográfica das práticas científicas que permite o autor formular críticas aos divisores natureza e cultura, indivíduo e sociedade, sujeito e objeto, racionalidade e poder, ciência e sociedade – fundamentais para o pensamento moderno oficial. Porém, a etnografia nos recintos de produção científica revela como essas oposições não se sustentam em suas práticas cotidianas, o que Latour caracteriza como “o caráter oficioso” da modernidade. Neste seu conhecido manifesto, defendeu que a antropologia poderia dissolver a cisão entre os "modernos" e os "outros" ao voltar-se para o "centro", aos locais onde a autoridade, a verdade e os fatos científicos são gestados.

G. Garitan, Bruno Latour em conferência sobre o Antropoceno, Musée du Quai Branly, 14 de março de 2015. Licença de reúso com atribuição creative commons 4.0

Nascido em Beaune, na França, Latour estudou filosofia na Universidade de Dijon e obteve o título de doutor em teologia filosófica pela Universidade de Tours em 1975, com uma tese sobre exegese e ontologia em textos bíblicos. Entre 1973 e 1975, conheceu a antropologia durante um estágio de pesquisa na Costa do Marfim pelo ORSTOM – antigo órgão francês para o desenvolvimento científico e tecnológico nas colônias e ex-colônias. Em 1975, convidado pelo cientista francês Roger Guillemin, realizou uma etnografia num laboratório de neuroendocrinologia do Instituto Salk em San Diego, nos Estados Unidos, com o sociólogo britânico Steve Woolgar (1950- ). Seguiu-se a publicação em coautoria de Vida de laboratório: a produção dos fatos científicos (1979), marco na etnografia de laboratórios. Latour e Woolgar afastaram sua atenção das verdades estabelecidas, direcionando-a para as práticas coletivas dos cientistas, com destaque original para as textuais, como a criação de inscrições e gráficos a partir dos experimentos de bancada. Os autores defendem que não há natureza fora dos laboratórios, sendo o produto que emerge das manutenções e estabilizações através dos testes, inscrições e publicações, cuja forma final é o fato científico.

Latour foi professor do Centro de Sociologia da Inovação da École des Mines, em Paris (1982-2006) e da Sciences Po – Paris (2006-2017). Suas pesquisas foram realizadas em locais como centros de inovação tecnológica; instituições governamentais; campos de primatologia no Quênia e de pedologia na Amazônia. Realizou também exegeses de textos científicos e religiosos, e escreveu uma história de Louis Pasteur, os micróbios, as vacinas e a constituição da ciência e da sociedade francesa no século XIX. Experimentou curadorias e performances teatrais, enveredando ainda pelas humanidades digitais. O autor inspirou-se em especial no filósofo das ciências Michel Serres (1930-2019); na semiótica do franco-lituano Algirdas Julien Greimas (1917-1992) e na etnometodologia do sociólogo Harold Garfinkel (1917-2011). Entre suas diversas obras, destacam-se as de cunho ensaístico e programático: Ciência em ação (1987), Jamais fomos modernos (1991), Esperança de Pandora (1999), Reagregando o social (2005) e Investigação sobre os modos de existência (2012), que reuniram seus achados empíricos e leituras de estudos etnográficos e historiográficos de outros autores.

Após as publicações de Thomas Kuhn (1922-1996) sobre as estruturas sociais da ciência, uma geração de sociólogos e historiadores constituíram nos anos 1970 e 1980 o campo dos estudos de ciência, tecnologia e sociedade: ao lado de Latour, David Bloor (1942- ), Harry Collins (1943- ), John Law (1946- ), Karin Knorr Cetina (1944- ), Michel Callon (1945- ), Steven Shapin (1943- ), Simon Schaffer (1955- ) e Susan Leigh Star (1954-2010). Esse conjunto diverso de autores dedicou-se a investigar empiricamente a formação de comunidades científicas e as disputas entre elas. Incluindo Latour, vários trabalharam na constituição dos estudos de "controvérsias sociotécnicas", voltados às ciências tanto "ganhadoras" como "perdedoras", de modo a compreender como as disputas entre grupos eram resolvidas e os fatos científicos estabilizados – "sociotécnicas", pois evidenciam que as dinâmicas são concomitantemente sociais e científicas.

Em diálogo com Callon e Law, Latour propôs que, para compreender como qualquer controvérsia era solucionada, importava descrever como cientistas, técnicos, as amostras, os seres não humanos nas bancadas e as máquinas agiam uns em relação aos outros. O propósito era fundar um repertório metodológico comum para investir contra reducionismos e assimetrias nos estudos sobre ciência. Por um lado, havia análises realistas que frisavam a racionalidade como critério explicativo e separavam fatos das pessoas, das práticas e dos discursos que os produzem. Por outro, algumas explicações sociológicas frisavam apenas a política e o contexto, deixando de fora os seres, materiais e fenômenos essenciais na produção científica. Para resolver tal impasse, o conceito de ator, ou actante (emprestado da semiologia), foi pensado para não distinguir metodologicamente agências humanas e não humanas e compreender como alianças eficazes entre cientistas e seres diversos em rede estabilizam as controvérsias.

As formulações de Latour, Callon e Law reverberaram nas elaborações da primatóloga Shirley Strum (1947- ) e da filósofa Annemarie Mol (1958- ); e, na virada dos anos 1990, esses autores propuseram formas alternativas de descrever o social, no que veio a ser conhecido como teoria ator-rede (actor-network theory ou ANT), cujo foco está nas associações de humanos e não humanos, agentes enredados na constituição de mundos. A recuperação da obra do sociólogo francês Gabriel Tarde (1843-1904) foi central para a formulação latouriana da ANT. Outro conceito importante de Latour foi a do "parlamento das coisas", que, alinhado ao de "cosmopolítica" da filósofa Isabelle Stengers (1949- ), critica uma noção de política exclusivamente humana e de uma natureza apartada dos humanos e argumenta que a democracia deveria ser estendida para os seres e coisas. Latour escreveu sobre o Antropoceno, as mudanças climáticas e as misturas de fatores não humanos e atividades humanas. Escreveu também sobre a "hipótese de Gaia", formulada pelo químico James Lovelock (1919-2022) e pela bióloga Lynn Margulis (1938-2011) a respeito das relações entre organismos vivos e processos geoquímicos da Terra, e o que Latour definiu como a “intrusão” do próprio planeta e dos seres na política, em meio às crises ecológicas e sanitárias criadas pela modernidade industrial.

Por defender a construção, e não a descoberta, dos fatos científicos, Latour foi acusado de relativismo por alguns cientistas naturais, no que ficou conhecido como "guerra das ciências". Reverberações desses debates se desdobraram na acusação de que os estudos sociais da ciência e da tecnologia teriam estimulado negacionismos anti-ciência, críticas que Latour buscou enfrentar. Procurou tratar com mais cuidado conceitos, segundo ele, lidos erroneamente e se empenhou em reafirmar sua interlocução com cientistas para lidar com as crises que assolam o planeta.

Latour dialogou extensivamente com antropólogos da chamada "virada ontológica", como Eduardo Viveiros de Castro (1951- ), Donna Haraway (1944- ), Marilyn Strathern (1941- ) e Philippe Descola (1949- ). No Brasil, seus livros e artigos foram amplamente traduzidos e, entre os que trabalharam com sua obra, estão os antropólogos da ciência Eduardo Vargas, Guilherme Sá, Jean Segata, Letícia Cesarino e Stelio Marras; as filósofas Alyne Costa e Déborah Danowski; os pesquisadores André Lemos e Ivan da Costa Marques e os autores da coletânea Dossiê Bruno Latour (2021), organizada por Geane Alzamora, Joana Ziller e Francisco Coutinho.

Como citar este verbete:
MARINI, Marisol & BAILÃO, André S. 2023. "Bruno Latour". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/bruno-latour

ISSN: 2676-038X (online)

Acesse aqui a versão em PDF ]

L
bibliografia

AKRICH, Madeleine, CALLON, Michel & LATOUR, Bruno, Sociologie de la traduction, Paris, Presses des Mines, 2006

ALZAMORA, Geane, ZILLER, JOANA & COUTINHO, Francisco (orgs.), Dossiê Bruno Latour, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2020

BACHUR, João Paulo, "Assimetrias da Antropologia simétrica de Bruno Latour", Revista Brasileira de Ciências Sociais, 31 (92), 2016, https://doi.org/10.17666/319209/2016

BARCELOS NEGO, Aristóteles, RAMOS, Danilo, BÜHLER, Maíra Santi, SZTUTMAN, Renato, MARRAS, Stelio & MACEDO, Valéria, "Abaeté, rede de Antropologia Simétrica. Entrevista com Márcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro", cadernos de campo, São Paulo, 14/15, 2006, p. 177-190

DIAS, Jamille Pinheiro, SZTUTMAN, Renato & MARRAS, Stelio, "Múltiplos e animados modos de existência: entrevista com Bruno Latour", Revista de Antropologia, 57 (1), São Paulo, 2014, p. 499-519

DURING, Élie & JEANPIERRE, Laurent (orgs.), Dossiê "Bruno Latour ou la pluralité des mondes", Critique, 2012/11, n. 786, 2012

LATOUR, Bruno, Les Microbes. Guerre et paix; Irréductions, Paris, A. M. Métailié, 1984

LATOUR, Bruno, Science in action: how to follow scientists and engineers through society, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1987 (Trad. bras. Ivone Benedetti, São Paulo, Ed. UNESP, 2000)

LATOUR, Bruno, "Visualization and cognition: thinking with eyes and hands" (1986), in: LYNCH, Michael & WOOLGAR, Steve (eds.), Representation in scientific activity, Cambridge, MA, MIT Press, 1990, p. 19-68 (Trad. bras. David Ramirez, Terra Brasilis, 4, 2015)

LATOUR, Bruno, Nous n'avons jamais été modernes. Essai d'anthropologie symétrique, Paris, La Découverte, 1991 (Trad. Bras. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994)

LATOUR, Bruno, Aramis ou l’amour des techniques, Paris, La Découverte, 1992

LATOUR, Bruno, "Do objects have history? A meeting between Pasteur and Whitehead in a lactic acid bath", L'effet Whitehead, Vrin, 1994 (Trad. Bras. Sergio Góes de Paula. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 2 (1), 1995)

LATOUR, Bruno, Petite réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches, Paris, La Découverte, 1996 (Trad. Bras. Sandra Moreira. Bauru, EDUSC, 2002)

LATOUR, Bruno, Pandora's hope: an essay on the reality of science studies, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1999 (Trad. Bras. Gilson Cesar Cardoso de Sousa. Bauru, EDUSC, 2001)

LATOUR, Bruno, Politiques de la nature. Comment faire entrer les sciences en démocratie, Paris, La Découverte, 1999 (Trad. Bras. Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru, EDUSC, 2004)

LATOUR, Bruno, "Factures/fractures. De la notion de réseau à celle d'attachement" (1998), in: MICOUD, André & PERONI, Michel (eds.), Ce qui nous relie, La Tour d'Aigues, Ed. de l'Aube, 2000, p. 189-208 (Trad. Bras. Theophilos Rifio, Dalila Floriani Petry & Jean Segata. ILHA Revista de Antropologia, 17 (2), Florianópolis, 2015, p. 123-146)

LATOUR, Bruno, La Fabrique du droit: une ethnographie du Conseil d'État, Paris, La Découverte, 2002 (Trad. Bras. Rachel Meneguello. São Paulo, Ed. Unesp, 2019)

LATOUR, Bruno, "Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of controversy", Critical Inquiry, 30 (2), 2004 p. 225-248 (Trad. Bras. Ana Paula Morel, Déborah Danowski, Lia Weltman, Mariana Vilela & Tobias Marconde. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, 29 (46), 2020, p. 173-204)

LATOUR, Bruno, Reassembling the social. An introduction to actor-network theory, Oxford, Oxford University Press, 2005 (Trad. Bras. Gilson Cesar Cardoso de Sousa. Salvador/Bauru, EDUFBA/EDUSC, 2012)

LATOUR, Bruno, Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques, Paris, La Découverte, 2010 (Trad. Bras. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Editora 34, 2016)

LATOUR, Bruno, Enquête sur les modes d'existence: une anthropologie des modernes, Paris, La Découverte, 2012 (Trad. Bras. Alexandre Fernandez. Petrópolis, Ed. Vozes, 2019)

LATOUR, Bruno, Jubiler ou les tourments de la parole religieuse, Paris, La Découverte, 2013 (Trad. Bras. Rachel Meneguello. São Paulo, Ed. Unesp, 2020)

LATOUR, Bruno, Face à Gaïa: huit conférences sur le nouveau régime climatique, Paris, La Découverte, 2015 (Trad. Bras. Maryalua Meyer. São Paulo, Ed. Ubu/Ateliê de Humanidades, 2020)

LATOUR, Bruno, Où atterrir? Comment s'orienter en politique, Paris, La Découverte, 2017 (Trad. Bras. Marcela Vieira. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2020)

LATOUR, Bruno, Où suis-je? Leçons du confinement à l'usage des terrestres, Paris, La Découverte, 2021 (Trad. Bras. Raquel de Azevedo. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2022)

LATOUR, Bruno & CALLON, Michel, "Unscrewing the big Leviathan: how do actors macrostructure reality", in: KNORR, K. & CICOUREL, A. (orgs.), Advances in social theory and methodology: towards an integration of micro and macro sociologies, Londres, Routledge, 1981, p. 277-303

LATOUR, Bruno, GODMER, Laurent & SMADJA, David, "​​L'œuvre de Bruno Latour: une pensée politique exégétique", Raisons politiques, 47 (3), 2012, p. 115-148

LATOUR, Bruno & WEIBEL, Peter (eds.), Making Things Public. Atmospheres of Democracy, Cambridge, MA, MIT Press, 2005

LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve, Laboratory life: the construction of scientific facts, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1979 (Trad. Bras. Angela Ramalho Vianna. São Paulo, Relume Dumará, 1997)

MACHADO, Ricardo, "Das políticas da natureza à natureza das políticas. Um sobrevoo sobre a obra de Bruno Latour. Entrevista especial com Letícia Cesarino", Instituto Humanitas Online – UNISINOS, 08 jul. 2021, disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/610559-das-polit…

MARINI, Marisol, "Sem alarmes, sem surpresas – fertilizar, fermentar, reagir e metamorfosear o pensamento de Bruno Latour", Ponto Urbe [Online], 30 (2), 2022, disponível em: https://journals.openedition.org/pontourbe/13705

MARQUES, Ivan da Costa, "Tecnologia, Ciência e Ativismo Militante em Bruno Latour", in: KLEBA, J., CRUZ, C., ALVEAR, C. (orgs.), Engenharias e outras práticas técnicas engajadas – Vol 3: Diálogos Interdisciplinares e decoloniais, Campina Grande, EDUEPB, 2022

MARRAS, Stelio, "A herança do dualismo modernista natureza-sociedade", Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 9, n. 3, 2021, p. 293–315, 2021. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/43075

SAYES, E. "Actor–Network Theory and methodology: Just what does it mean to say that nonhumans have agency?", Social Studies of Science, 44(1), 2013, p. 134–149

SEGATA, Jean (org.), Dossiê Teoria ator-rede (TAR), Inter-Legere: Revista de pós-graduação em ciências sociais da UFRN, Natal, 19, 2016

SZTUTMAN, Renato & MARRAS, Stelio, "Por uma antropologia do centro. Entrevista com Bruno Latour", Mana, 10 (2), Rio de Janeiro, 2004, p. 397-414

STRUM, Shirley & LATOUR, Bruno, "Redefining the social link: From baboons to humans", Social Science Information, 26 (4), 1987, p. 783–802