conceito
Jurema

O termo Jurema aparece em obras de ciências sociais e humanas para designar determinadas espécies vegetais do gênero Acácia, a exemplo da Mimosa tenuiflora. Indica também a bebida psicoativa feita a partir dos componentes desse mesmo vegetal, utilizada em rituais de comunidades indígenas e naqueles que integram uma parte das religiões de matriz africana; nomeia, ainda, os próprios rituais cujos participantes ingerem a bebida. No que concerne à cosmovisão da Jurema, uma plêiade de símbolos está presente nos rituais que apresentam modos bastante variados de composição. Em linhas gerais, a bebida, a fumaça expelida dos cachimbos, o maracá e os cânticos são elementos comuns a quase todas as cerimônias realizadas, seja nas comunidades indígenas seja naquelas que constituem as religiões de matriz africana. Entre os indígenas, os ritos permitem que xamãs estabeleçam comunicações com o mundo dos Encantados. Já no universo afro –  mais recorrente em centros urbanos – , o cerimonial possui algumas semelhanças com as chamadas “giras de Umbanda” e as divindades que caracterizam o métier juremeiro são os mestres e as mestras. Outra particularidade desse cosmos são os ritos iniciáticos por meio dos quais os praticantes tem acesso às “cidades” da Jurema onde, conforme os relatos nativos, o iniciado constrói sua relação com uma divindade, adquirindo os conhecimentos adequados para realizar trabalhos de cura e prevenir-se de infortúnios.
© Pedro Stoeckli Pires, "As cestas com oferendas de frutas e os defumadores são arranjados na mata como altares. V Kipupa Malunguinho da Jurema Sagrada", 2012. Fotografia. Revista Cadernos de Campo, 21, p. 195. Reprodução autorizada.

Embora existam diferentes pontos de vista acerca das religiões juremeiras, em quase todas as pesquisas sobre o tema, os estudiosos concordam que a Jurema abrange um universo mítico-ritual de origem indígena, frequentemente presenciado na região Nordeste do Brasil desde o período colonial. Na década de 1930, surgem os primeiros escritos sobre o uso ritualístico da Jurema. Mário de Andrade (1893-1945) e os técnicos da Missão de Pesquisas Folclóricas, dedicada a inventariar manifestações culturais brasileiras, catalogam músicas que são gravadas, transcritas e comentadas pelo escritor modernista, por exemplo em Música de feitiçaria no Brasil, conferência de 1933. Por meio de uma análise melódica das cantigas do “catimbó” –  nome utilizado na época para denominar o uso da jurema em rituais realizados nas cidades de Natal e Recife – , o pesquisador chama a atenção para a função hipnótica da musicalidade e destaca a presença de alguns símbolos em cerimônias como “os mestres” e a “árvore da jurema”. Nesse mesmo período, o médico e folclorista Gonçalves Fernandes (1909-1986) utiliza as noções de “mistura religiosa” e “sincretismo” em suas obras, Xangôs do nordeste: investigações sobre os cultos negro-fetichistas do Recife, 1937 e O folclore mágico do nordeste, 1938, para falar sobre a prática do catimbó no contexto recifense, estabelecendo contraposições entre os ritos catimbozeiros e o universo do Xangô que, assim como o candomblé, seria o culto fidedigno a uma origem africana na visão de certos intelectuais. Em 1945, em Imagens do nordeste místico em branco e preto, o sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974) descreve um ritual de catimbó, ratificando a origem indígena da Jurema e estabelecendo oposições entre essa prática e o candomblé da Bahia. Na sequência, Câmara Cascudo (1898-1986), ao tornar públicos alguns de seus escritos sobre folclore, como Meleagro (1978) e o Dicionário do folclore brasileiro (1969), faz coro às ideias de Mário de Andrade propondo uma antologia das manifestações culturais brasileiras e difundindo um tema que ocupou lugar de destaque no pensamento social e nas ciências sociais brasileiras: o mito das três raças. Nesse sentido, vê o catimbó como resultado de confluências entre a bruxaria ibérica, a farmacopeia indígena da Jurema e a musicalidade rítmica das macumbas bantu.

Até os anos 1990, os pesquisadores pouco se debruçam sobre as religiões juremeiras. Na primeira metade do século XX, alguns autores definem a Jurema em termos de “magia”, “feitiçaria” e “baixo espiritismo” e as análises, de maneira geral, resumem-se a breves descrições dos rituais. Algumas exceções merecem destaque, lembremos, entre outros, o trabalho de René Vandezande (1930-2017), que investiga o uso da Jurema em terreiros de Umbanda da Paraíba e, que, em Catimbó: pesquisa exploratória sobre uma forma nordestina de religião mediúnica (1975), descreve relatos que remontam à trajetória da família Acaes, de Alhandra, salientando o modo como esses atores construíram uma tradição, até hoje reverenciada na região Nordeste, em torno do uso da Jurema. Nos anos 2000, surgem novas pesquisas sobre o tema; algumas colocam em relevo o horizonte histórico, caso de Guilherme Medeiros que, em O uso ritual da Jurema entre os indígenas do Brasil colonial e as dinâmicas das fronteiras territoriais do nordeste no século XVIII (2006), analisa documentos coloniais, afirmando ser possível aventar o uso da Jurema a partir do XVIII. Outras pesquisas – como Toré e jurema: emblemas indígenas no nordeste do Brasil (2008), de Rodrigo de Azeredo Grünewald acerca do uso da Jurema pelos índios Atikum – voltam-se para as identidades étnicas construídas pelos grupos indígenas do Nordeste que, almejando reivindicar o reconhecimento da autoctonia perante o Estado brasileiro e conquistar direitos, lançam mão da Jurema como símbolo de seu status de “povos tradicionais”.

Dos anos 2010 em diante, a literatura acadêmica sobre o uso da Jurema se amplia, dando lugar a construções narrativas inéditas. Em 2017, o juremeiro e fundador do Quilombo Cultural Malunguinho em Pernambuco, Alexandre L’Omi L’Odò defende a dissertação de mestrado Juremologia: uma busca etnográfica para sistematização de princípios da cosmovisão da jurema sagrada, por meio da qual constrói um relato sobre a tradição da Jurema do ponto de vista de seus praticantes, conferindo visibilidade à figura de Malunguinho, que é tanto o nome do líder do Quilombo do Catucá – construído e destruído na primeira metade do século XIX – quanto o de uma divindade do panteão das religiões juremeiras.

Como citar este verbete:
BARRETO, Marcus Vinícius. 2019. "Jurema". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/jurema>

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
05/12/2019
autoria

Marcus Vinícius Barreto

bibliografia

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