Aparecida Sueli Carneiro nasceu em São Paulo em 1950, uma das três filhas de um casal negro. Ingressa no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) no ano de 1971, e é no ambiente universitário durante a ditadura militar, entre 1971 e 1980, que se aproxima dos movimentos negro e feminista. Além da forte militância, Carneiro é responsável por uma vasta produção voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira, que encontra repercussão em diversas áreas do conhecimento, também na antropologia. São mais de 150 artigos publicados em jornais e revistas, assim como 17 em livros, que buscam fazer convergir ativismo e reflexão teórica, por exemplo Mulher negra (1995), Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (2011) e Escritos de uma vida (2018).
A militância política de Sueli Carneiro inicia-se no Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), uma das principais organizações do movimento negro da cidade de São Paulo, fundada em 1971 por Thereza Santos, produtora e atriz, e Eduardo de Oliveira, sociólogo. Durante a primeira fase do Cecan (1971-1974), a arte era a principal ferramenta política de combate ao racismo, particularmente pela produção de peças teatrais, a exemplo de “E agora Falamos Nós” (1972), e de composições musicais. O grupo dá continuidade aos trabalhos do Teatro Experimental do Negro (TEN) fundado por Abdias do Nascimento (1914-2011) no Rio de Janeiro, em 1944, e à sua proposta de que os negros sejam autores de suas próprias versões da história do Brasil e da escravidão. A entrada de Sueli Carneiro no centro coincide com a sua segunda fase, após o exílio de Thereza Santos em 1976, período em que a entidade passa por um momento de reorganização, colocando a educação como foco maior de atenção e voltando-se mais diretamente para a juventude negra. Em 1981, o centro encerra suas atividades, mas sua história fortalece as bases de outros movimentos políticos e entidades negras da capital paulista. Em 1983, Carneiro reivindica a participação de uma representante negra no Conselho Estadual da Condição Feminina, órgão então formado por 32 mulheres, todas brancas. Em 1988 funda o Geledés – Instituto da Mulher Negra, primeira organização negra e feminista de São Paulo. O Instituto visa questões específicas das mulheres negras, buscando fortalecer sua autonomia e participação social crítica, além de desigualdades de gênero e raça, que quer combater. Nos anos de 1990, Carneiro cria no Geledés um programa de saúde física e mental destinado às mulheres negras e o projeto Rappers, destinado à juventude negra, vítima de agressão policial.
Sueli Carneiro propõe, como diz o título de um livro de 2003, “enegrecer o feminismo” por meio de uma abordagem interseccional que considere simultaneamente questões de raça, classe social, religião, idades e outros. Defende que uma das formas de luta contra a opressão de gênero é a contestação dos estereótipos socialmente construídos sobre o papel da mulher: a suposta fragilidade feminina, seu confinamento ao espaço doméstico, seu lugar de procriadora etc. A construção de uma “identidade feminina”, título de obra de 1989, diz ela, é parte de um projeto feminista comprometido com a destituição dos modelos convencionais sobre o que é ser mulher e com o resgate de potencialidades negadas às mulheres pela ideologia patriarcal ao longo da história. Tal projeto, ainda em curso, depende também da aquisição de um conjunto de direitos capazes de garantir às mulheres a plena cidadania: direito à saúde, igualdade salarial, direito à educação, direito do controle da própria reprodução, além do combate à violência doméstica e ao estupro. Além disso, e fazendo eco ao que defendem outras ativistas e intelectuais negras, Carneiro pergunta: seria a identidade feminina, historicamente constituída, a mesma para todas as mulheres? A pergunta visa interpelar a realidade de parte das mulheres negras, que não se reconhecem nos estereótipos associados à feminilidade. Ao contrário dos supostos seres frágeis e confinados ao espaço doméstico, as mulheres negras fazem parte de um contingente escravizado, que trabalhou nas lavouras e nas ruas como vendedoras, quituteiras, prostitutas, empregadas domésticas etc. Nessa direção, a perspectiva de análise que privilegia a intersecção de papéis de gênero e raça parece a mais adequada por permitir destacar essa experiência histórica distinta, que desafia concepções correntes acerca de uma suposta identidade feminina universal. A noção de “feminismo negro” é desenvolvida em trabalhos como Organização Nacional das Mulheres Negras: Desafios e Perspectivas (1988), Construindo Cumplicidades (2001), além de Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero (2003).
A crítica à universalização da categoria “mulher” por meio da questão racial na década de 1980 converteu Sueli Carneiro em uma das pioneiras na disseminação do feminismo negro no Brasil, ao lado de Lélia Gonzalez (1935-1994). Sua produção intelectual inspira-se em conceitos de Michel Foucault (1926-1984), sobretudo os de “dispositivo” e de “biopoder”, para tematizar como políticas públicas, instituições e discursos científicos corroboram e reiteram a condição subalternizada das mulheres negras no Brasil. Em sua tese de doutorado, A construção do outro como não ser como fundamento do ser, defendida na Faculdade de Educação da USP em 2005, desenvolveu a ideia de “dispositivo de racialidade”, que opera pela naturalização dos papéis sociais. A autora se vale também do conceito de “epistemicídio”, cunhado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos (1940-), para abordar a tentativa de apagamento dos saberes dos povos colonizados, com ênfase nas mulheres negras, por serem elas parte do segmento mais oprimido desses povos.
No campo dos estudos de gênero, sua produção dialoga com intelectuais e feministas negras brasileiras como Beatriz Nascimento (1942-1995), Luiza Bairros (1953-2016), além de Lélia Gonzalez . Em 2018, Djamila Ribeiro (1980-), filósofa política e ativista, cria o selo editorial Sueli Carneiro, inaugurado com uma coletânea em sua homenagem, em reconhecimento à importância de suas ideias e atuação.
Como citar este verbete:
BARTHOLOMEU, Juliana S. S. “Sueli Carneiro”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2019. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/sueli-carneiro>
ISSN: 2676-038X (online)
Juliana Stefany Silva Bartholomeu
BORGES, Silva Rosane, Sueli Carneiro, São Paulo, Selo Negro, 2009 [Retratos do Brasil Negro]
CARNEIRO, Sueli, A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, tese de doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005
CARNEIRO, Sueli, “A mulher negra na sociedade brasileira - o papel do movimento feminista na luta anti-racista” In: Kabengele Munanga (org.), História do negro no Brasil, Brasília, Fundação Cultural Palmares –MinC/ CNPq, 2004
CARNEIRO, Sueli, Escritos de uma vida, São Paulo, Editora Letramento, 2018
CARNEIRO, Sueli, “Gênero, raça e ascensão”, São Paulo, Estudos feministas, v. 3, 1995, p. 301-596
CARNEIRO, Sueli, Mulher negra, São Paulo, Cadernos Geledés, Instituto da Mulher Negra, Cadernos IV, 1993
CARNEIRO, Sueli, "Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero" In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (org.), Racismos contemporâneos, Rio de Janeiro, Takano Editora, 2003
CARNEIRO, Sueli, Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, São Paulo, Selo Negro, 2011
CARNEIRO, Sueli, Dispositivo de racialidade. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, São Paulo, Ed. Zahar, 2023
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