Jean Rouch (1917-2004), matemático e engenheiro de formação, atuou entre a antropologia e o cinema, campos, para ele, inseparáveis. Sua obra e pensamento encontram repercussão nos dois domínios, sendo que sua extensa produção de filmes etnográficos - mais de 120 filmes, a maioria produzida na África ocidental - se sobrepõe, do ponto de vista dos rebatimentos posteriores, aos seus escritos.
Seu primeiro contato com a África data de 1941, quando esteve no Níger como engenheiro, interessando-se pela etnografia e pelo uso da imagem. De volta à França inicia um doutorado em antropologia sob a orientação de Marcel Griaule (1898-1956), que culmina com as teses Contribution à l’histoire des Songhay (tese complementar, 1953) e La religion et la magie Songhay, (tese principal, 1960). Ligado ao Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em 1947, realiza pesquisas sistemáticas sobre os Songhay, importante grupo étnico do Mali e do Níger, produzindo imagens que se converteriam em seu primeiro filme Au pays des mages noirs (1947), com a colaboração do parceiro Damouré Zika (1923-2009). Paralelamente à pesquisas etnográficas, atua no campo cinematográfico, criando, em 1952, o Comité du Film Ethnographique no Museu do Homem, em Paris, ao lado de Henri Langlois (1914-1977), Enrico Fulchignoni (1913-1988), Marcel Griaule (1898-1956), André Leroi-Gourhan (1911-1986) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Sem abandonar as pesquisas africanistas, dedica-se à questão da imigração e da colonização na região da Costa do Ouro (atual Gana) e, em 1957, volta-se para a Costa do Marfim, interessado em problemas como migrações e profetismo. Entre as décadas de 1960 e 1970, diversifica suas investigações, escrevendo artigos e realizando filmes a respeito de temas como religião, possessão e ritual; caça e pesca; arqueologia; etnomusicologia e dança. Produziu ainda reflexões sobre narrativas rituais e tradições orais; mitologia; ritos funerários e conhecimentos medicinais, sem esquecer as técnicas de gravação e cinematográficas, que praticou e sobre as quais pensou.
No campo da produção fílmica, inspirado por Dziga Vertov (1896-1954) utiliza o recurso do cinema-direto de modo próprio, preferindo considerá-lo um cinema-verdade, recusando tratar a matéria fílmica como simples objeto. Sua proposta é explicitar a relação entre o cineasta e as pessoas filmadas (sujeitos da mise-en-scène), defendendo que o etnólogo-cineasta seja por elas afetado, em uma experiência que denominou cine-transe. Os seus filmes deixam ver o compromisso com o contexto e com as condições do ambiente; a fluência cotidiana da fala, dos gestos e do comportamento, além da relação estabelecida, através do olhar e da escuta, entre os corpos que filmam e aqueles que são filmados. Tais balizas levam à proposição de uma linguagem cinematográfica na qual o roteiro prévio deixa de ser determinante, o que irá ecoar nos cineastas da chamada nouvelle vague francesa, dos anos 1960. Ao seu modo de filmar relacional e pouco roteirizado - refletido e aprimorado ao longo de sua vida, em função da crítica pós-montagem, da formação da equipe técnica, da atuação partilhada com as personagens e da composição dos argumentos e roteiros - soma-se um processo de produção de caráter marcadamente dialógico. Influenciado por Robert Flaherty (1884-1951), especialmente por Nanook of the north (1922), Rouch decide compartilhar as imagens filmadas com seus interlocutores, experimentando novas formas de colaboração. Em Bataille sur le grand fleuve (1951), por exemplo, assume o papel de um etnólogo-cineasta-narrador; os nativos filmados, por sua vez, opinam a respeito das filmagens já editadas e de seus resultados. Inspirado pelas possibilidades de ampliação desses diálogos, o autor desenvolve a proposta de uma antropologia compartilhada, amparada na transformação radical das relações entre antropólogo e nativos, filmadores e filmados, que as equipes formadas em conjunto com os africanos-interlocutores evidenciam, tanto para a escolha dos temas quanto para a realização das imagens. Não tardou para que Rouch encontrasse como parceiros os nigerenses Damouré Zika (1923-2009), Lam Ibrahima Dia e Tallou Mouzourane. Juntos, realizam Jaguar (1954-67), Moi, un noir (1957-58), Petit à petit 1968-70) e Cocorico! monsieur Poulet (1974), submetendo a experiência cinematográfica e etnográfica a um processo criativo, frequentemente designado por etnoficção. Tais experimentos permitem afirmar que a obra de Jean Rouch não é apenas um conjunto de olhares sobre diversos grupos africanos, incluindo também olhares africanos sobre si mesmos, uns sobre os outros e sobre a sociedade ocidental.
No contexto dos movimentos de maio de 1968, com a colaboração Enrico Fulchignoni (1913-1988), então diretor da Cinemateca Francesa, Claudine de France e Colette Piault, Rouch cria no Departamento de Ciências Sociais o que viria a ser o curso de cinema etnográfico e documentário da Universidade Paris X – Nanterre, hoje Paris Ouest. Essa formação, que se torna modelar, tem como objetivo central oferecer ao etnógrafo o recurso do cinema como método de pesquisa e reflexão antropológica. Em 1977, Rouch é convidado a organizar, com Jacques d’Arthuys (1894-1943), uma oficina de cinema para alunos do Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, no interior da qual realizam o curta-metragem Makwayela (1977). A partir dessa experiência são criados os Ateliers Varan (1981), com a finalidade de formar cineastas em países sem uma produção cinematográfica consolidada, levando os recursos a grupos étnicos e sociais com pouco acesso a técnicas e meios de produção do cinema. São incontáveis os prêmios e títulos recebidos por Rouch, isso sem esquecer os desdobramentos de sua extensa obra cinematográfica que termina por infletir nas formas de fazer etnografia, sinal da conexão íntima entre cinema e antropologia, em todo o seu percurso.
Como citar este verbete:
COSTA, Ana Carolina Estrela da. “Jean Rouch”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/jean-rouch>
ISSN: 2676-038X (online)
Ana Carolina Estrela da Costa
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http://www.comite-film-ethno.net/jean-rouch/bibliographie.html
Filmografia Principal do Autor
1947: Au pays des mages noirs
1951: Bataille sur le grand fleuve
1954-67: Jaguar
1955: Les maîtres fous
1958: Moi, un noir
1959: La pyramide humaine
1960: Chronique d’un été
1965: La chasse au lion à l’arc
1966: Batteries Dogon - éléments pour une étude des rythmes
1968-70: Petit-à-petit
1972: Horendi
1974: Cocorico! Monsieur Poulet
1986: Dionysos
1993: Madame l’eau
1998: Le premier matin du monde
2002: Le rêve plus fort que la mort