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O totemismo hoje

No ano de 1962 Claude Lévi-Strauss (1908-2009) publicou dois livros concebidos no interior de um mesmo projeto: O totemismo hoje e O pensamento selvagem. Ambos tratam de questões relativas ao modo como populações outrora consideradas primitivas operam classificações a partir de índices concretos do mundo natural, como espécies animais e vegetais. O livro O totemismo hoje nasce de uma encomenda do historiador das religiões Georges Dumézil (1898-1986) para a coleção Mythes et religions, dirigida por ele. A obra cresce e se desdobra em duas publicações, que conhecem destinos diferentes: o primeiro é lido nos círculos especializados; o segundo tem impacto no debate filosófico mais amplo. Em ambos, a inspiração de Lévi-Strauss na linguística estrutural é reafirmada, e a antropologia estrutural parte “rumo ao intelecto”, isto é, passa a se preocupar com processos inconscientes de classificação subjacentes aos fenômenos empíricos observados pelos etnólogos – algo que já se podia perceber na “Introdução à obra de Marcel Mauss” (1950) e nos ensaios reunidos em Antropologia estrutural (1958).

Claude Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd'hui, Paris, Presses Universitaires de France, 1962. Mythes et Religions.

Quando Lévi-Strauss escreve sobre o totemismo, já havia discordâncias sobre os fenômenos abarcados pelo conceito. O termo totem é de origem Ojibwa, povo indígena da região dos Grandes Lagos na América do Norte, e designa a pertença a um clã. Os clãs ojibwa geralmente têm nomes de animais. Classicamente, os estudos sobre o totemismo tendiam a inseri-lo nas discussões sobre religião: era considerado como a crença de muitos povos ditos primitivos em algum tipo de relação especial – mítica, de descendência, de afinidade, territorial – entre um ser (animal ou vegetal) e um grupo ou indivíduo. Muitas vezes essas relações entre grupo humano ou pessoa e sua espécie totêmica implicava em tabus, proibições ou obrigações rituais. Discutia-se também a relação entre o totemismo e a organização social: as crenças totêmicas em geral ocorriam em sociedades segmentares – divididas em clãs ou outros tipos de subgrupos. O acúmulo de descrições etnográficas revelou que eram extremamente variados os modos pelos quais distintos povos do mundo relacionavam parcelas de grupos humanos a animais ou vegetais, dificultando uma definição unívoca de totemismo.

Diante dos impasses dos estudos do totemismo na antropologia, duas posições analíticas são identificadas por Lévi-Strauss: uma que abandona a noção de totemismo, pois ela não corresponderia a nenhum conjunto de fenômenos específicos – como defendido por Franz Boas (1858-1942); outra que se lança na elaboração de classificações cada vez mais detalhadas para distinguir tipos heterogêneos de totemismos – como nas análises do antropólogo australiano Adolphus P. Elkin (1891-1979). Embora discorde dessa segunda posição nominalista, Lévi-Strauss não descarta a ideia de totemismo. Se tantos antropólogos usaram a noção para tratar dos modos pelos quais diversos povos relacionam grupos humanos a seres naturais, é porque os fenômenos abarcados pela ideia de totemismo devem possuir alguma unidade.

Edward Curtis, "A vespa com seu zumbido vai espantar todos", homem Kwakiutl vestido de animal em frente a um totem c. 1910–14. Fotografia. The J. Paul Getty Museum, Los Angeles, 84.XM.638.49. Domínio público.

O totemismo hoje é construído a partir da exposição e da crítica a posições de diversos analistas anteriores. Lévi-Strauss questiona as explicações funcionalistas – que ele identifica nos trabalhos de Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), Bronisław Malinowski (1884-1942) e Raymond Firth (1901-2002). Refuta com dados etnográficos a explicação de que as espécies totêmicas são eleitas como epônimos dos grupos sociais por serem úteis – nem todas as espécies comestíveis ou úteis serviam como totens e nem todos os totens se referiam a espécies úteis. Também descarta análises que explicavam a importância das espécies totêmicas recorrendo às emoções, sentimentos e pulsões. Critica ainda certas abordagens intelectualistas do totemismo, a de Meyer Fortes (1906-1983) por exemplo, um dos primeiros a pensar o totem como símbolo para as relações entre humanos; para Lévi-Strauss, o erro de Fortes foi ter tratado a relação entre animais e humanos a partir de suas semelhanças sensíveis. Igualmente intelectualista, a segunda teoria do totemismo em Radcliffe-Brown possui o mérito de ter questionado os motivos de eleição de totens específicos e de ter indagado, assim, sobre as semelhanças e diferenças dos animais totêmicos, sempre presentes na forma de pares em relação de oposição e complementariedade; sua análise, no entanto, não avança além do plano etnográfico.

É finalmente a partir das inspirações de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Henri Bergson (1859-1941) – e das ressonâncias que localiza entre o pensamento deste último filósofo e dos indígenas Sioux da América do Norte – que Lévi-Strauss consegue explicar o totemismo como um fenômeno de caráter universal que diz respeito a modos de percepção e categorização do mundo. Nesses autores, Lévi-Strauss encontra apoio para a tese de que o pensamento opera universalmente por oposições e contrastes e conclui que a intelecção engendra o social. Se é na estrutura da natureza que a percepção e a cognição humanas encontram o material para expressar e classificar as diferenças sociais, é porque pertencem todos (natureza, percepção e cognição) a uma mesma realidade – posição aprofundada em “Estruturalismo e ecologia” (1973).

Precisando os modos plurais de relação entre humanos e não humanos, Lévi-Strauss conclui pela especificidade do totemismo como um modo de classificação, que nada tem a ver com religião, onde se observam relações de contiguidade (metonímicas) entre humanos e não humanos. Como processo de categorização, o totemismo usa as diferenças perceptíveis entre seres naturais para, metaforicamente, tratar das diferenças entre grupos humanos; ele deixa ver, assim, um procedimento que opera por meio de homologias entre as diferenças da série natural (as variadas espécies e fenômenos) e as diferenças da série cultural (grupos, segmentos e classes). Tal modo de classificação é a marca do pensamento selvagem, afirma em O pensamento selvagem, argumentando que este tipo de pensamento não é o pensamento “dos selvagens”, mas uma modalidade universal de pensamento. A tese é antecipada em O totemismo hoje que, ao defender a racionalidade equiparável de toda a humanidade, define um marco na antropologia.

Comentários posteriores à obra de Claude Lévi-Strauss apontam O totemismo hoje e O pensamento selvagem como um ponto de passagem entre os trabalhos anteriores sobre parentesco e organização social – notadamente Estruturas elementares do parentesco (1949) – e as obras posteriores do autor dedicadas à mitologia. Dentre as releituras contemporâneas das formulações lévi-straussianas do totemismo, encontra-se a de Philippe Descola (1949-) em Par-delà nature et culture (2005). Partindo das contribuições de Lévi-Strauss ao tema, Descola expande a classificação totêmica na direção de diferentes modos de relacionar humanos e não humanos, e para isso reintroduz na análise os planos da identificação e da relação. Sua retomada do totemismo coloca-o, assim, ao lado de outros esquemas de classificação e práxis encontrados ao redor do mundo: o animismo, o naturalismo e o analogismo.

Como citar este verbete:
PAULA, Camila Galan de. “O totemismo hoje”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2023. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/o-totemismo-hoje

ISSN: 2676-038X (online)

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