Lila Abu-Lughod (1952-) é uma antropóloga nascida em Illinois, Estados Unidos, reconhecida por sua produção com enfoque no mundo islâmico e árabe. Tornou-se referência para o campo da antropologia das emoções, dos estudos de gênero, da antropologia das formas expressivas, também para os estudos sobre o Islã e a política cultural no Oriente Médio. Filha do intelectual e ativista palestino Ibrahim Abu-Lughod (exilado após maio de 1948, no contexto da operação militar israelense na cidade de Jaffa) e da socióloga norte-americana Janet Abu-Lughod, graduou-se em sociologia e antropologia no Carleton College, Minnesota. Em Harvard, ganhou o título de mestre em antropologia social (1978) e doutorou-se com a tese Honor, modesty, and poetry in a bedouin society: ideology and experience among Awlad ‘Ali of Egypt (1984). Na década de 1980 iniciou seus estudos sobre teorias feministas, que seriam incorporadas à teoria antropológica em suas etnografias. Lecionou no Williams College (1983-1987), nas universidades de Princeton (1990-1991), Nova Iorque (1991-2000) e Columbia (2000-). Nesta última, assumiria a cátedra Joseph L. Buttenwieser de Ciências Sociais no Departamento de Antropologia (2009).
Os primeiros livros publicados de Lila Abu-Lughod estão baseados em etnografias de longa duração realizadas no Egito. Veiled sentiments: honor and poetry in a Bedouin society (1986) é resultado de um trabalho de campo desenvolvido entre 1978 e início de 1980, período em que viveu entre famílias do povo Awlad ‘Ali no Deserto Ocidental. A partir das relações que estabeleceu com as mulheres Awlad ‘Ali, e retornando ao Egito em 1989, concebeu A escrita dos mundos de mulheres: histórias beduínas (1993), definido como um “experimento em etnografia feminista”. A obra foi projetada para abarcar temas e questões que a autora acreditou faltarem no livro de 1986, a saber: autoridade e escrita etnográficas, vida cotidiana e o dinamismo das relações interpessoais.
A partir de reflexões suscitadas em suas primeiras etnografias, a antropóloga passa a questionar tipificações e definições gerais de estrutura social e cultura, pilares de certa antropologia, assim como alguns pressupostos feministas ocidentais pautados em uma perspectiva eurocêntrica e orientalista. Tais questionamentos culminam no artigo “A escrita contra a cultura”, publicado em Recapturing Anthropology: working in the present (1991), crítica direta à obra A escrita da cultura: poética e política da etnografia (1986), organizada por George Marcus (1941-) e James Clifford (1945-), marco da chamada antropologia pós-moderna. Neste artigo, chama a atenção para aspectos políticos e éticos envolvidos na prática antropológica e expõe as limitações da noção de “cultura”, demonstrando como seu uso tende a homogeneizar experiências de grupos e comunidades. De modo a escapar dessas perspectivas, propõe o que denomina de “etnografias do particular”, estratégia analítico-textual atenta às particularidades de trajetórias individuais, além de instrumento de “humanismo tático”, isto é, abordagem capaz de refletir sobre a posição e a responsabilidade do pesquisador.
Em obras posteriores, aprofundaria suas análises sobre gênero, colonialismo, Islã, orientalismo, feminismo, política e ética do conhecimento, assim como as discussões que vinha empreendendo sobre as representações do “Outro”. Questões propostas no artigo “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros” (2002) - escrito no contexto da invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos em 2001 - serão retomadas no livro Do muslim women need saving? (2013). Opondo-se tanto ao universalismo quanto ao relativismo cultural, a autora busca desmontar pressupostos ocidentais que instrumentalizam a questão do direito das mulheres em prol de uma política colonial pretensamente direcionada à “libertação” das mulheres muçulmanas, retratadas como passivas e eternamente oprimidas. Em interlocução direta com autoras feministas, como Saba Mahmood (1961-2018) e Gayatri Spivak (1942-), e crítica aos argumentos da escritora Ayaan Hirsi Ali (1969-), defende que tais representações simplistas descartam a análise de conjunturas históricas e sociais complexas, justificando intervenções militares em contextos não brancos e não ocidentais. No campo dos estudos da mídia, poder e representação, lançaria Dramas of nationhood: the politics of television in Egypt (2005) e Local contexts of Islamism in popular media (2006).
Após as mortes de Ibrahim Abu-Lughod (1929-2001) e de Edward Said (1935-2003) um novo tema surge no horizonte de suas publicações: a Palestina. A coletânea Nakba: Palestine (1948), and the claims of memory (2007), organizada com Ahmad Sa'di e dedicada aos dois ativistas e intelectuais palestinos, traz no artigo “Return to half-ruins: memory, postmemory, and living history in Palestine” a história do retorno de seu pai a terras palestinas após quarenta anos de exílio, enfrentando os temas da memória e da violência. A pesquisadora passa a integrar ativamente na década de 2010 o movimento global Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS) pelo fim da ocupação dos territórios palestinos por meio do boicote econômico, acadêmico e político ao estado de Israel.
Os livros e artigos premiados de Lila Abu-Lughod foram traduzidos para quatorze idiomas e a antropóloga foi eleita em 2023 para a American Academy of Arts and Sciences. Sua obra está permeada por temas e questões basilares para a antropologia contemporânea, fazendo com que a autora tenha se tornado uma referência ao propor novas maneiras de se pensar, fazer e escrever etnografia. No Brasil, participou da 33ª Reunião Brasileira de Antropologia em 2022 com a Conferência virtual “Agradecimentos de uma antropóloga” e, ainda que grande parte de sua obra não tenha sido traduzida, suas ideias repercutem especialmente nos estudos de gênero, etnografia, cultura e colonialismo no país.
Como citar este verbete:
AQUINO, Isabella Almeida de Abreu. “Lila Abu-Lughod”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2024. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/lila-abu-lughod
ISSN: 2676-038X (online)
Isabella Almeida de Abreu Aquino
ABU-LUGHOD, Lila, Veiled sentiments: honor and poetry in a Bedouin society, Berkeley, University of California Press, 1986
ABU-LUGHOD, Lila, “Writing against culture” In: Fox, Richard (ed.), Recapturing anthropology. Santa Fe, School of American Research Press, 1991 (Trad. bras. Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego, e Leandro Durazzo, Equatorial – Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, v. 5, n. 8, 2018, p. 193–226)
ABU-LUGHOD, Lila, Writing women's worlds: bedouin stories, Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1993 (Trad. bras. Maria Claudia Coelho, Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2020)
ABU-LUGHOD, Lila (ed.), Remaking women: feminism and modernity in the Middle East, Princeton, Princeton University Press, 1998
ABU-LUGHOD, Lila, “Orientalism and Middle East feminist studies”, Feminist Studies, v. 27, n. l, 2001, p. 101-113
ABU-LUGHOD, Lila, “Do Muslim women really need saving? Anthropological reflections on cultural relativism and its others”, American Anthropologist, 104, n. 3, 2002, p. 783-790 (Trad. bras. João Henrique Amorim, Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 2, 2012, p. 451-470)
ABU-LUGHOD, Lila, Dramas of Nationhood: the politics of television in Egypt, Chicago, University of Chicago Press, 2005
ABU-LUGHOD, Lila, Local contexts of Islamism in popular media, Amsterdam, Amsterdam University Press, Institute for the Study of Islam in the Modern World Papers, 2006
ABU-LUGHOD, Lila, “The active social life of “Muslim Women's Rights”: a plea for ethnography, not polemic, with cases from Egypt and Palestine”, Journal of Middle East Women’s Studies, vol. 6, no. 1, 2010, p. 1-45
ABU-LUGHOD, Lila, Do Muslim women need saving?, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2013
ABU-LUGHOD, Lila, Conferência 33ª RBA - Lila Abu-Lughod, [S/l], TV ABA, 2022. 1 vídeo (61′48″). Publicado pela Associação Brasileira de Antropologia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SF6n-nJpnGQ&t=496s.
ABU-LUGHOD, Lila, HAMMAMI, Rema & SHALHOUB-KEVORKIAN, Nadera (eds.). The cunning of gender violence geopolitics and feminism, Duke University Press, 2023
BANGSTAD, Sindre & ABU-LUGHOD, Lila, “Ten questions about anthropology, feminism, Middle East politics, and publics”- Sindre Bangstad interviews Lila Abu-Lughod, American Ethnologist Online, 2016. Disponível em: https://americanethnologist.org/online-content/interviews/lila-abu-lugh…
MARCUS, George & CLIFFORD, James (eds), Writing culture: the poetics and politics of ethnography, Los Angeles, University of California Press, 1986 (Trad. Bras. Maria Claudia Coelho. Editora da UERJ/ Papéis Selvagens, 2016)
SA’DI, Ahmad H. & ABU-LUGHOD Lila (eds), Nakba: Palestine, 1948, and the claims of memory, Nova Iorque e Chichester, Columbia University Press, 2007