O termo gênero é comumente utilizado nas ciências sociais e humanas para enfatizar o caráter cultural das diferenças existentes entre homens e mulheres. As assimetrias de poder que demarcam estas distinções e discriminações são justificadas pela atribuição de características entendidas como naturais entre homens e mulheres, traços decorrentes das distinções corpóreas, em especial as associadas às capacidades reprodutivas. Os estudos clássicos de Marcel Mauss (1872-1950), As técnicas do corpo (1934), e de Margaret Mead (1901-1971), Sexo e Temperamento em três sociedades primitivas (1936) já indicavam que certos padrões de conduta não estavam relacionados à natureza de homens e mulheres, mas antes aos diferentes processos culturais e de socialização.
É possível recuar às décadas de 1920 e 1930, em diferentes países, para verificar, principalmente no continente europeu e na América do Norte, que as mulheres romperam com formas agudas de desigualdade, especificamente no que diz respeito ao direito à educação, à propriedade e ao voto. Esta dinâmica de equiparação de direitos foi central no pensamento feminista, sobretudo a partir dos anos 1960. Diferentes correntes feministas questionavam o suposto caráter natural da subordinação feminina e sustentavam a ideia de que essa assimetria era decorrente do modo como a mulher havia sido construída histórica e socialmente. Para além das diferenciações teóricas, as causas do jugo feminino foram apresentadas a partir de dois aspectos determinantes, um biológico e um social, isto é, a reprodução e a produção social. O corpo passa a ser considerado a principal causa da opressão sexual e da desigualdade social. Para o debate feminista pós 1960, no qual se destacam os nomes das ativistas Betty Friedam (1921-2006) e bell hooks (1952-), as categorias “mulher”, “opressão” e “patriarcado” tornam-se centrais. A relação homem/mulher passa a ser entendida como uma relação política e a dominação masculina, postulada como universal, presente em diferentes épocas e culturas. A noção de patriarcado sai de voga, ao passo que o uso da categoria “mulher” é substituído por mulheres no plural, com o intuito de evidenciar as diversas “mulheres”, já que a mulher branca não seria dominada da mesma forma que a mulher negra; ao lado disso, distinções como posição social e geração também passam a ser entendidas como fundamentais nesse processo.
O conceito de gênero se desenvolve em um quadro marcado por intelectuais e militantes feministas em todo o mundo, abrindo espaço para a consolidação de novas formas de conhecimento e de luta política. Foram em especial as feministas norte-americanas e inglesas que se apropriaram do termo gênero, pioneiramente utilizado pelo psicanalista Robert Stoller (1924-1991) em intervenção no Congresso Psicanalítico Internacional em Estocolmo (1963), para marcar a distinção entre natureza e cultura. Apresentado por ele como “identidade de gênero”, o conceito enfatizava o caráter social em contraste com a diferença sexual tida como natural e inscrita no corpo fisiológico. O ensaio clássico da antropóloga Gayle Rubin (1949-), “O tráfico de mulheres: notas para uma economia política do sexo” (1975), torna-se uma referência para o debate feminista e para os estudos antropológicos. A partir das leituras de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Sigmund Freud (1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981), a autora cria o conceito “sistema sexo/gênero”, descrito como um conjunto de arranjos modelados pela intervenção social que incidem na matéria prima biológica do sexo humano e da procriação. Os princípios fundamentais para a manutenção desse sistema seriam o constrangimento da sexualidade feminina, o tabu do incesto e a heterossexualidade. A análise de Rubin esteve marcada pelo princípio da igualdade presente na teoria marxista, tendo influenciado os estudos feministas nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Trabalhos antropológicos posteriores voltam-se para a análise de contextos específicos, com foco em processos sociais que estabelecem a assimetria entre os sexos. A nova orientação tem por objetivo lançar uma crítica epistemológica às respostas transculturais oferecidas para enfrentar a suposta subordinação da mulher. Carol MacCormack (1933-1997) em “Nature, culture and gender: a critique” (1980) enfatiza que a dicotomia natureza/cultura é reflexo de uma concepção cultural específica e não uma característica universal, e, por isso mesmo, seria também necessário relativizar o conceito de dominação. Para a autora, há uma arbitrariedade de significação nos termos macho e fêmea tanto quanto nas noções de natureza e cultura. Nessa perspectiva, Marilyn Strathern (1941-) em “No nature, no culture: the Hagen case” (1980), utiliza a etnografia realizada no monte Hagen, da Melanésia, para evidenciar a inaplicabilidade dos conceitos ocidentais sobre outras culturas, uma vez que foram identificadas entre os Hagen concepções distintas das relações entre natureza/cultura e homens/mulheres.
Um novo paradigma teórico retira as questões de gênero do âmbito universal, situando-o como categoria de análise relacional e dinâmica; nessa vertente situa-se o ensaio de Joan Wallach Scott (1941-), “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica” (1986). A autora, já distante das primeiras formulações sobre o tema, postula gênero como categoria histórica que permite pensar as origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres. A análise de Scott se distingue de formulações anteriores por sublinhar que nenhuma experiência corporal pode ser compreendida fora dos processos sociais e históricos. A autora chama a atenção para a necessidade de examinar o modo como gênero é construído em relação a uma série de atividades, organizações sociais e representações culturais, historicamente situadas. Tais perspectivas sobre o gênero indicam uma leitura que estranha e questiona qualquer naturalização da diferença e dos processos de significação do poder. A partir da abordagem de Judith Butler (1956-) em Problemas de gênero (1990), todos os corpos são entendidos como sexuados, generificados e racializados por meio de um processo regulado de repetição de discursos. Para Butler, referência incontornável nesse debate, o gênero é antes “o ato de fazer do que o de ser”, sequência de atos cadenciados no interior de um quadro regulatório rígido, não havendo sexo capaz de resistir sem o gênero. A emergência dessas leituras logrou mobilizar e reordenar argumentos não apenas da antropologia, mas também da filosofia, da linguística e, também, das ciências biológicas e da natureza.
Como citar este verbete:
MAZZARIELLO, Carolina Cordeiro; FERREIRA, Lucas Bulgarelli. “Gênero”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/genero
ISSN: 2676-038X (online)
Carolina Cordeiro Mazzariello e Lucas Bulgarelli Ferreira
BUTLER, Judith, Gender trouble: feminism and the subversion of identity. Nova York, Routledge, 1990 (Trad. Bras. Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003)
MACCORMACK, Carol, “Nature, culture and gender: a critique” In: Carol MacComarck l & Marilyn Strathern (ed.), Nature, culture and gender, Cambridge, Cambridge University Press, 1980
MAUSS, Marcel, “Les techniques du corps” (1934) In: Sociologie et Anthropologie. Paris, PUF, 1950 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac & Naify, 2003)
MEAD, Margareth, Sex and temperament in three primitive societies, New York, Dell, 1935 (Trad. Bras. Rosa Krausz. São Paulo, Perspectiva, 2000)
MOORE, Henrietta, “Understanding sex and Gender” In: Tim Ingold (ed), Companion Encyclopedia of Anthropology, Londres, Routledge, 1997
PISCITELLI, Adriana, “Recriando a (categoria) mulher?” In: Leila M. Algranti (org), A prática feminista e o conceito de gênero, Campinas, IFCH/UNICAMP, 2002, v. 48, p. 7-42
RUBIN, Gayle, “The traffic in women. Notes on the “political economy” of sex" In: Rayna Reiter,(ed), Toward an anthropology of women, New York, Monthly Review Press, 1975
SCOTT, Joan, Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of history, New York, Columbia University Press, 1989
STRATHERN, Marilyn, “No nature, no culture: the Hagen case” In: Carol MacComarck & Marilyn Strathern (ed), Nature, culture and gender, Cambridge, Cambridge University Press, 1980 (Trad. Bras. Iracema Dulley e Jamille Pinheiro. São Paulo, Cosac Naify, 2014)