obra
Women writing culture

Women writing culture (1995) é uma coletânea organizada pelas antropólogas feministas norte-americanas Ruth Behar (1956-) e Deborah A. Gordon, composta por dezessete ensaios dedicados a revisar o cânone antropológico e a trazer a contribuição de mulheres à antropologia para o centro do debate. A obra é resultado de uma conferência organizada por Behar em 1991 na Universidade de Michigan, intitulada Women writing culture: anthropology and its other voices, além de tributária do artigo “Women writing culture: another telling of the story of american anthropology”, publicado pela autora em 1993. A coletânea volta-se para duas crises: a chamada “crise da representação”, que teve origem na crítica pós-moderna à tradição colonialista e às estruturas de poder subjacentes às formas de produção de conhecimento da antropologia, em meados dos anos 1970; e uma crise interna ao pensamento feminista, que via, por volta dos anos 1980, seu caráter também colonialista e universalista criticado por perspectivas não brancas e não ocidentais. Reunindo um conjunto expressivo de antropólogas, como Barbara Tedlock (1942-), Lila Abu-Lughod (1952-), Anna Tsing (1952-), entre outras, o conjunto tem o mérito de enfrentar dilemas relacionados à escrita etnográfica de uma perspectiva feminista, colocando questões ainda hoje atuais para se pensar relações entre a representação e a escrita de mulheres antropólogas.

O livro é uma reação direta à antologia Writing culture: the poetics and politics of ethnography (1986), organizada pelos antropólogos norte-americanos James Clifford (1945-) e George Marcus (1941-). Marco da crítica pós-moderna à antropologia, a publicação discute os efeitos do poder no texto etnográfico e na prática do trabalho de campo, encorajando formas de escrita experimentais, dialógicas e reflexivas. Contudo, sob a justificativa de Clifford, na introdução ao volume, de que até então “o feminismo não havia contribuído muito para a análise teórica das etnografias como textos”, o trabalho de mulheres antropólogas foi excluído da coletânea. Clifford afirmava que, apesar de algumas obras refletirem, em sua forma, perspectivas feministas sobre subjetividade e relacionalidade, elas não se propunham a fazer uma discussão inovadora sobre textos e retóricas – afirmação que reiterava certa hierarquização e divisão do trabalho antropológico da época, em que mulheres eram vistas como portadoras de maior sensibilidade, e homens de maior rigor teórico.

À época aluna de Clifford, Gordon ofereceu uma resposta pioneira aos autores no artigo “Writing culture, writing feminism” (1988), em que criticava o fato de que práticas etnográficas ditas “experimentais”, ao mesmo tempo em que se diziam decoloniais, fundavam-se em uma autoridade marcadamente masculina e relegavam o feminismo a uma posição de inferioridade. Por isso Behar, que afirma na introdução a Women writing culture ter o projeto nascido com o objetivo de responder a Clifford e Marcus, convidou Gordon para coeditar o volume. Os ensaios, contudo, foram além da proposta de reação aos autores, empenhando-se em refletir sobre o colonialismo interno ao pensamento feminista a partir da interlocução com a obra This bridge called my back: writings by radical women of color (1981), publicado pelas escritoras feministas norte-americanas de origem mexicana Cherríe Moraga (1952-) e Gloria Anzaldúa (1942-2004). O livro reunia cartas, ensaios, poemas e artigos de mulheres não brancas, não ocidentais e não heterossexuais, dando ênfase à pluralidade de vozes do pensamento feminista e conferindo ao volume Women writing culture uma forte preocupação com a valorização dessas vozes e com a experimentação de diferentes formas de expressão textual.

Margaret Mead entre duas jovens Samoa, ca. 1926. Impressão em gelatina de prata. Library of Congresso, Manuscript Division (50a)

A coletânea está organizada em quatro partes, cada uma delas destinada a abordar aspectos das questões colocadas pelas crises da representação e do pensamento feminista. A primeira parte do livro, “Além do nós e do outro”, traz um conto, uma peça e excertos de diários pessoais para enfatizar as possibilidades da experimentação textual de antropólogas diante dos dilemas da representação. A segunda, “Outra história, outro cânone", faz uma releitura do passado da antropologia ao recuperar o legado de mulheres como Margaret Mead (1901-1978), Barbara Myerhoff (1953-1985), Elsie Parsons (1875-1941), Ruth Benedict (1887-1948) e Zora Hurston (1891-1960). Na terceira, “A antropologia tem um sexo?”, os ensaios discutem como a contribuição de mulheres à disciplina foi negligenciada nos processos de produção e reprodução do seu cânone. A quarta e última seção, “Feministas viajantes”, reúne trabalhos de mulheres não brancas, não ocidentais e não heterossexuais, enfatizando a importância de dar destaque à multiplicidade de expressões do pensamento feminista. O livro termina com um texto de Gordon, que discute como, diante de um cânone antropológico masculino, certa produção feminista viu-se receosa em arriscar inovações, guiando seu trabalho pela busca de objetividade e desejo de legitimação. Apesar disso, continua, feministas têm se dedicado a criar uma forma de etnografia que não é nem convencional, nem experimental, mas particularmente feminista, caracterizada por práticas etnográficas colaborativas, democráticas e sensíveis a marcadores de gênero e raça, e ainda capazes de alcançar um público mais amplo, alinhando-se, quando necessário, a uma agenda compartilhada de reivindicações políticas.

A obra segue atual ao colocar em questão a tradição da disciplina, cujo modelo masculino vem sendo assegurado através das gerações, por meio de seu ensino, teoria e prática. Por isso mesmo ela vem influenciando o trabalho de antropólogas e estudiosas fora e dentro do Brasil, como Marilyn Strathern (1941-), Lila Abu-Lughod (1952-), Gayatri Spivak (1942-), Henrietta Moore (1957-), Mariza Corrêa (1945-2016), Cecilia Sardenberg (1948-), Maria Luiza Heilborn (1954-), Maria Filomena Gregori, Alinne Bonetti, entre tantas outras; todas preocupadas em pensar o lugar de mulheres na teoria e prática antropológicas, as possíveis relações entre feminismo e etnografia, bem como as possibilidades de construção de uma “antropologia feminista”, hoje em consolidação no Brasil.

Como citar este verbete:
MELO, Ana Clara Klink de. “Women writing culture”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2022. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/women-writing-culture

ISSN: 2676-038X (online)

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W
data de publicação
12/07/2022
autoria

Ana Clara Klink de Melo

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