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Beatriz Nascimento

Maria Beatriz Nascimento (1942-1995) nasceu em Aracaju, estado do Sergipe. É a oitava filha de Rubina Pereira do Nascimento e Francisco Xavier do Nascimento, que migram para a cidade do Rio de Janeiro no final de 1949. Beatriz ingressa no curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano de 1968, concluindo a graduação em 1971. Sob orientação do historiador José Honório Rodrigues, realiza estágio de pesquisa no Arquivo Nacional e trabalha como professora de história da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Especialista em história do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca-se por suas pesquisas voltadas ao estudo do que denomina de “sistemas sociais alternativos organizados por pessoas negras”, investigando dos quilombos às favelas; suas pesquisas sobre as relações raciais no país, de modo geral realizadas fora das instituições acadêmicas, revelam as conjunções entre história e antropologia.

Maria Beatriz Nascimento, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Divulgação.

No decurso de sua trajetória, estudos acadêmicos e ativismo político antirracista são indissociáveis. Na UFF, em 1974, participa da criação do Grupo de Trabalho André Rebouças e, em 1975, do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Nesse período, conhece o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1923-1980), a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994) e o jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999), com quem partilha itinerários de pesquisa e militância. A convite de Eduardo Oliveira, participa da Quinzena do Negro, evento ocorrido na Universidade de São Paulo (USP) em 1977. Nele, Nascimento apresenta a conferência “Historiografia do quilombo”, delineando os contornos do que ela desenvolveria, posteriormente, como espaços de resistência cultural negra. Espaços que, dos bailes blacks aos territórios de favelas, constituiriam uma identidade negra como instrumento de autoafirmação racial, intelectual e existencial, além de território simbólico ancorado no próprio corpo negro.

Em 1979, em viagem ao continente africano, a autora conhece territórios de antigos quilombos angolanos e reafirma a vinculação entre as culturas negras brasileiras e africanas, sob o prisma das conexões atlânticas. No documentário Ôrí, lançado em 1989, dirigido pela cineasta e socióloga Raquel Gerber, Nascimento narra parte da trajetória dos movimentos negros no Brasil entre 1977 e 1988, ancorando-se no conceito do “quilombo” como ideia fundamental, que atravessa sua própria narrativa biográfica, para retraçar continuidades históricas entre o quilombo e suas redefinições nos dias atuais. No filme, temas centrais de seus trabalhos, como a corporeidade e a diáspora negra, são trazidos à tona, com acento na resistência cultural. Os candomblés e as religiosidades afro-brasileiras também ganham destaque no chão onde a “feitura da cabeça” significa renascimento e reconexão com a ancestralidade.   

Nascimento escreveu uma série de textos, poemas, roteiros, ensaios e estudos teóricos, entre os quais se destacam: “Por uma história do homem negro” (1974); “Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso” (1982); “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra” (1985). Em seus trabalhos, a autora contribui para a problematização de estereótipos e naturalizações da negritude no imaginário social brasileiro, com aportes conceituais significativos à antropologia, como o “kilombo/quilombo”, que redimensiona a compreensão da categoria a partir da resistência cultural e racial, bem como da noção de corpo/território negro. Corpo que é entendido como documento e território de reconstrução individual e coletiva do “eu sou”, como afirmará a autora em Ô. É nesse sentido que, para além da compreensão estritamente histórica, o kilombo/quilombo, como instituição africana e diaspórica, representa um marco na capacidade de resistência e organização da população negra, materializada nos corpos dos indivíduos que se unem em prol de um projeto societário comum. Kilombo/quilombo é o espaço simbólico do corpo que se move, e cuja potência concretiza-se no encontro com outros corpos, na circulação, no movimento negro comunitário do corpo-memória que resiste ao sequestro colonial e à aniquilação racial.  

Em 1995, a historiadora é vítima de feminicídio. A despeito da morte precoce, aos 52 anos, seus trabalhos permanecem como referências fundamentais para o campo das ciências sociais e das humanidades. Em 2021, o geógrafo e antropólogo Alex Ratts (1964) publica a coletânea, Uma história feita por mãos negras – relações raciais, quilombos e movimentos, de Beatriz Nascimento, obra na qual estão reunidos alguns dos seus principais textos escritos. 

Ao enfatizar o caráter de resistência político-cultural das organizações e dos espaços de produção da cultura negra, Nascimento reorienta os termos dos debates acerca da história e da antropologia brasileiras, com repercussões significativas no campo das relações raciais. Com notórias contribuições à pesquisa acadêmica, em outubro de 2021 é outorgado a ela o título póstumo de Doutora honoris causa in memoriam pela UFRJ. Ao lado de Lélia Gonzalez (1935-1994), Sueli Carneiro (1950-) e Luiza Bairros (1953-2016), Nascimento figura como umas das mais importantes intelectuais negras brasileiras.

Como citar este verbete:

REIS, Diego dos Santos. 2022. "Beatriz Nascimento". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/beatriz-nascimento

ISSN: 2676-038X (online)

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N
data de publicação
13/07/2022
autoria

Diego dos Santos Reis

bibliografia

BATISTA, Wagner Vinhas, Palavras sobre uma historiadora transatlântica: estudo da trajetória intelectual de Maria Beatriz Nascimento, Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos), Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2016

LOPES, Helena Theodoro, SIQUEIRA, José Jorge & NASCIMENTO, Maria Beatriz, Negro e cultura no Brasil: pequena enciclopédia da cultura brasileira, Rio de Janeiro, UNIBRADE/UNESCO, 1987

NASCIMENTO, Beatriz, Beatriz Nascimento - quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição, São Paulo, União dos Coletivos Pan-africanistas, 2018

NASCIMENTO, Beatriz, “Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso”, Estudos Afro-Asiáticos, nº 6-7, Rio de Janeiro, CEAA/UCAM, 1982, p. 259–265

NASCIMENTO, Beatriz, “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”, Afrodiáspora, nº 6-7, Rio de Janeiro, IPEAFRO, 1985, p. 41–49

NASCIMENTO, Beatriz, “Por uma história do homem negro”, Revista de Cultura Vozes, nº 68 (1), Petrópolis/RJ, 1974, p. 41–45

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos – Beatriz Nascimento. Organização Alex Ratts. 1. Ed. São Paulo: Zahar, 2021

NASCIMENTO, Beatriz, Todas [as] distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento, Organização de Alex Ratts & Bethânia Gomes, Salvador, Editora Ogum’s Toques Negros, 201.

ÔRÍ. Documentário Raquel Gerber (dir), 1989.

RATTS, Alex, Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, São Paulo: Instituto Kuanza/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006