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Michel Leiris

Michel Leiris (1901-1990) é, a um só tempo, etnólogo, etnógrafo, poeta, memorialista e crítico de arte. Esta posição liminar franqueia-lhe o trânsito incessante pelas fronteiras epistemológicas entre esses domínios, que se retroalimentam; basta lembrar que seus sucessivos escritos autobiográficos orientam-se pela preparação de fichas segundo critérios similares aos que empregou nas pesquisas etnográficas.

Seu interesse pela antropologia foi suscitado por seus contatos com as vanguardas artística e literária de Paris dos anos 1920, fascinadas pelo primitivismo, e confirmado quando do trabalho na revista Documents, dirigida por Georges Bataille (1897-1962), momento em que conhece Marcel Griaule (1898-1956), que o convida a integrar a Missão etnográfica e linguística Dacar-Djibuti (1931-1933). Ao longo da viagem de dois anos pela África, Leiris desempenha a função de secretário-arquivista, realiza pesquisas de sociologia religiosa e dedica-se à redação de A África fantasma, diário publicado em 1934 que é recebido com reservas pelo meio antropológico em função do tom autobiográfico e subjetivo, que comprometia o estatuto científico da obra, segundo as convenções da época. O caráter pouco ortodoxo do diário reaparece, de outro modo, na tese em etnolinguística sobre o sigi so (língua iniciática da sociedade secreta masculina entre os dogons, habitantes do Sudão francês, atual Mali), rejeitada por seu orientador, o orientalista Louis Massignon (1883-1962), que exige a reformulação do trabalho, considerado inadequado às normas científicas do período. Mesmo depois de aprovada, rendendo a Leiris um diploma da Seção de Ciências Religiosas da École Pratique des Hautes Études (1938), ela seria publicada apenas dez anos depois - La langue secrète des Dogon de Sanga (1948). Tanto a tese como o estudo sobre os ritos de possessão dos gênios zâr em Gondar, na Etiópia (La Possession et ses aspects théâtraux chez les Éthiopiens de Gondar, 1958) são produtos de pesquisas realizadas durante a missão Dacar-Djibuti. Apesar de Leiris ter viajado outras vezes, sobretudo à África e às Antilhas, e de ter realizado pesquisas pontuais, com destaque para o estudo do vodu haitiano em parceria com Alfred Métraux (1902-1963), ele não faria outras pesquisas de campo de fôlego, o que não quer dizer que não tenha produzido reflexões antropológicas importantes, como o ensaio L’Ethnographe devant le colonialisme (1950), comprometidas com a denúncia pública do colonialismo e do racismo. A carreira antropológica do autor tem lugar no departamento de África negra do Museu de Etnografia do Trocadéro, Paris, onde permanece até a aposentadoria. Em 1967, Leiris e Jacqueline Delange, sua colega no museu, lançam um livro dedicado ao aspecto estético das artes negras, Afrique noire: la création plastique (1967), mais um indício das relações entre arte e antropologia em sua produção e percurso. A importância por ele atribuída à história da antropologia leva à fundação da revista Gradhiva (1986), com o antropólogo Jean Jamin, a quem legou a administração póstuma de seus escritos.

Michel Leiris em seu escritório no Museu do Homem. Charles Mallison, 1984, Wikipedia. Creative Commons.

Se o “segundo ofício” de Leiris era a antropologia, como ele declarava, o primeiro era a literatura, que remonta à metade dos anos 1920, quando ele dá os primeiros passos na poesia, integrando o movimento surrealista, entre 1924 e 1929. Ainda que não tenha abandonado a poesia, dedica-se especialmente à elaboração de uma obra autobiográfica A idade viril (1939), que conhecerá desdobramentos nos quatro volumes de La règle du jeu, publicados entre 1948 e 1976. Ao longo da vida, Leiris participa de diversos projetos: a revista Documents (1929-1930); o Collège de Sociologie (1937-1939), a revista Les Temps modernes, fundada por Jean-Paul Sartre, em 1945. Sua carreira literária é impensável sem as artes, alimentando-se do diálogo com a pintura, com a escultura, com a tauromaquia e com a ópera. Dedica-se à crítica de arte, comentando as obras de André Masson, Pablo Picasso, Joan Miró, Alberto Giacometti, Wifredo Lam e Francis Bacon, entre outros.

Na antropologia brasileira Michel Leiris é conhecido, sobretudo, como o autor de A África fantasma, traduzido em 2007. O interesse do livro refere-se à discussão sobre o lugar da subjetividade na produção do conhecimento antropológico, e ao debate sobre a relação entre a antropologia, a literatura e as artes em geral. Trabalhos acadêmicos recentes vêm contribuindo para as releituras do autor no país (como os de Fernanda Arêas Peixoto, Júlia Goyatá, Luís Felipe Sobral e Maria Victoria de Zorzi); a edição no Brasil do livro de Fernando G. Brumana sobre a Missão Dacar-Dijibouti é mais um indício do interesse recente pelo autor e pela antropologia francesa do entre-guerras. Isso sem esquecer outros de seus escritos, como O espelho da tauromaquia (1938), também disponível em português, expressão cabal dos movimentos do autor por diferentes áreas.

Como citar este verbete:
SOBRAL, Luís Felipe. 2016. "Michel Leiris". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/michel-leiris>

ISSN: 2676-038X (online)

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L
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