Georges Bataille (1897-1962), escritor francês de prolífica atividade intelectual em uma série de domínios - entre eles os da filosofia, artes, literatura, economia e antropologia - elaborou, ao longo do segundo e terceiro quartel do século XX, reflexões acerca de temas diversos, destacando-se a morte, o erotismo, a transgressão e o sagrado, amplamente tratados sob os ecos da filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1832), da literatura do Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814) e da antropologia de Marcel Mauss (1872-1950). Este último, cujos escritos sobre o problema da dádiva e do potlatch tornar-se-iam referência direta para toda uma geração de antropólogos e intelectuais em formação – entre os quais Michel Leiris (1901-1990) e Alfred Métraux (1902-1963), amigos de Bataille – teria impacto importante na produção intelectual do autor, desde suas primeiras publicações, “A noção de dispêndio” (1933), por exemplo, até trabalhos de maturidade, como A parte maldita (1949) e O Erotismo (1957).
Tendo concluído seus estudos na École Nationale des Chartres em 1922, Bataille obtém o título de arquivista paleógrafo, mantendo-se ligado aos trabalhos biblioteconômicos e arquivísticos até o fim da vida. Em Chartres, trava amizades com o jovem Alfred Métraux e, por intermédio deste, toma conhecimento dos cursos de Marcel Mauss, que tiveram grande influência em sua formação. Ainda em 1928, quando convidado para participar da elaboração do catálogo da primeira exposição de arte pré-colombiana de Paris, no Pavillion de Marsan sob organização do museólogo Georges Henri-Rivière (1897-1985), faz suas primeiras considerações sobre as sociedades “primitivas” no artigo “L’Amérique disparue” (1928), debruçando-se sobre os ritos sacrificiais dos povos Asteca e sobre as relações destes com o sagrado e com a arte.
Ao longo das décadas de 1920 e 1930, Bataille esteve à frente de uma série de empreitadas estéticas, teóricas e políticas, como as revistas Documents (1929-1930) e Acéphale (1936-1939), também se destacando por seu envolvimento no Collège de Sociologie (1937-1939). Nelas, aproxima temas antropológicos (que se ligam aos domínios do sagrado, do mito e da transgressão), de questões filosóficas (do “universalismo” em Hegel à crítica à filosofia ocidental em Nietzsche), numa perspectiva inovadora que busca retomar os ritos “primitivos”, sobretudo o potlatch das comunidades indígenas do noroeste americano e seu “dispêndio improdutivo”. Segundo ele, ao contrário do que se observa nas economias capitalistas, estes ritos chamam a atenção para momentos de “puro dispêndio”, que expressam desperdícios, transgressão de normas e tabus, contrariando qualquer ideia de acumulação de riquezas. Nos anos subsequentes ao fim da Segunda Guerra Mundial, até sua morte em 1962, Bataille publicaria ainda trabalhos importantes nos quais se observa um diálogo com a antropologia, ainda que em formas distintas: por exemplo A parte maldita (1949), onde discute com teses de Mauss sobre a troca e a dádiva, e Lascaux: ou, La naissance de l'art (1955), que se beneficia de discussões sobre as artes primitivas.
Se a interlocução com autores de referência para a antropologia, como Mauss, Georges Dumézil (1898-1986) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009), é frequente em sua obra, Bataille foi e ainda é pouco reconhecido nas discussões da disciplina de modo geral. Destacam-se, porém, tentativas recentes de pensar sua aproximação com a área tanto no cenário nacional como internacionalmente, seja sob o domínio da história das ideias – como na coletânea francesa de Dominique Lecoq e Jean-Luc Lory (1987) e no trabalho da norte-americana Michele Richman (2002), nos quais são recuperadas tanto as relações de Bataille com a antropologia ao longo do século XX quanto as potencialidades de suas formulações para horizontes antropológicos contemporâneos – ou nos trabalhos de Maria Victoria de Zorzi (2013) e Júlia Goyatá (2016), que retomam as experiências do autor na revista Documents (a primeira) e no Collège de Sociologie (a segunda), indicando os seus trânsitos entre artes, filosofia e antropologia.
O autor vem sendo relido ainda em função de contextos etnográficos específicos, sobretudo nos debates sobre gênero e sexualidade, por exemplos os estudos de Vincent Crapanzano (2010), nos Estados Unidos, e os de Maria Filomena Gregori (2010) e Camilo Braz (2010), no Brasil. Nestes últimos Bataille vem sendo recuperado como pensador ambíguo, criticado por manter-se preso a matrizes heteronormativas de pensamento, reproduzindo binarismos de gênero e uma interpretação mais afeita aos papéis de “ativos e passivos” entre homens e mulheres – especialmente em suas considerações sobre o erotismo como ato sacrificial, nas quais a mulher surge como sujeito sacrificado e o homem sacrificante, com pouca atenção concedida ao trânsito de sujeitos que não se veem nessas duas categorias. Já trabalhos de Goyatá (2016) e Rieusset (1987) destacam as possibilidades de se pensar noções como o sagrado e a arte em Bataille ainda pouco exploradas, tanto por sua concepção imanente do sagrado – na qual este não se encontra apartado da vida profana, como em certa tradição durkheimiana – como de uma arte que se quer próxima ao mito, em íntima relação com o inconsciente e com o que transborda o sujeito racional, afastando-se assim de concepções ocidentais como aquelas que defendem a “arte pela arte” ou que colocam o seu acento sobre o “indivíduo criador”, problemas desenvolvidos em trabalhos como L’apprenti sorcier (1938) e La conjuration sacrée (1936).
Essas diferentes leituras e abordagens dos escritos de Bataille indicam a importância das ideias de um autor que mantém relações estreitas com a antropologia, ainda a serem exploradas: seja pela recuperação das possibilidades de se pensar o sagrado e o problema da criação, inscrevendo-a no domínio do cotidiano, seja nas reflexões sobre os limites da sexualidade (em práticas do sadomasoquismo, por exemplo), ou ainda em suas sugestões críticas sobre modelos econômicos que fazem frente aos ditames neoliberais centrados no indivíduo e no regime de acumulação. Consagrado como escritor (como indica a reunião de suas obras literárias na Biblioteca Plêiade, em 2004); lido e relido por filósofos e ensaístas de todo o mundo (dentre seus principais tradutores e leitores no Brasil está Eliane Robert Moraes), Bataille mostra-se um pensador potente para a reflexão antropológica sobretudo em função das chaves analíticas que oferece para problematizar categorias centrais do pensamento ocidental.
Como citar este verbete:
TEIXEIRA, Gabriel Barbosa. “Georges Bataille”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2022. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/georges-bataille
ISSN: 2676-038X (online)
Gabriel Barbosa Teixeira
BATAILLE, Georges, L’Amérique disparue (1928) In: Œuvres complètes, I, Paris, Gallimard, 1970
BATAILLE, Georges, La notion de dépense (1933) In: Œuvres complètes, I, Paris, Gallimard, 1970 (Trad. Bras. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte, Autêntica, 2016)
BATAILLE, Georges (1936), “La conjuration sacrée” In: Oeuvres complètes. I Paris, Gallimard, 1970
BATAILLE, Georges (1938), “L´apprenti sorcier” In: HOLLIER, D. (org). Le Collège de Sociologie. Paris, Gallimard, 1995
BATAILLE, Georges. La part maudite (1949) In: Œuvres complètes, VII, Paris, Gallimard, 1976 (Trad. Bras. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte, Autêntica, 2016)
BATAILLE, Georges, Lascaux: ou, La naissance de l'art (1955) In: Œuvres complètes, IX, Paris, Gallimard, 1979
BATAILLE, Georges, L’Erotisme (1957) In: Œuvres complètes, VII, Paris, Gallimard, 1987 (Trad. Bras. Fernando Scheibe. Belo Horizonte, Autêntica, 2021)
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