conceito
Casamento por captura - John Ferguson McLennan

A noção de casamento por captura, também conhecida como casamento por rapto, foi sistematizada e conceitualizada pela primeira vez pelo antropólogo escocês John Ferguson McLennan (1827-1881) em seu livro Primitive Marriage (1865). A obra está organizada em torno da ideia de que a humanidade passa por estágios de desenvolvimento cujo ápice seria a civilização europeia; o que não quer dizer que o processo tenha sido uniforme e percorrido por todas as sociedades.

Ateliê de Francesco Primaticcio, "O Estupro de Helena" (c. 1533-1570), Óleo sobre tela (188,6 X 155,6 cm), The Bowes Museum

No livro, o autor tem como objeto a origem e o significado do rapto de mulheres visando o casamento, largamente difundido pelo mundo. McLennan interpreta a existência dessa forma de matrimônio – e das práticas matrimoniais nas quais a captura é apenas simbolizada, mas não efetivada – como a sobrevivência de formas sociais primitivas, e sobretudo do infanticídio feminino. Em um contexto social caracterizado pela hostilidade entre grupos e pela dificuldade em garantir a segurança e a subsistência, as mulheres eram vistas como menos capazes de contribuir para a sobrevivência grupal, levando à preferência pelo nascimento de bebês do sexo masculino e ao infanticídio de meninas. O resultado seria a escassez de mulheres no interior desses grupos, forçando o estabelecimento de arranjos matrimoniais entre uma mulher e mais de um homem (poliandria) e o ataque a outros grupos para a obtenção de esposas. Do rapto de mulheres resultaria a exogamia: a partir da proibição de casamento no interior da tribo, em virtude da escassez de mulheres, se consolida o costume do casamento fora do grupo. Com o passar do tempo, a prática torna-se uma obrigação; na medida em que os membros de uma tribo compartilham o mesmo sangue, sobre eles incide a regra da exogamia. Para McLennan, a noção moderna de propriedade se relaciona ao casamento por captura: as esposas capturadas seriam consideradas propriedades, estatuto estendido às crianças. Em um estágio posterior, a captura daria lugar à cessão da esposa pelo pai mediante pagamento, fazendo com que a noção de esposa como propriedade não apenas sobrevivesse, mas se consolidasse, assumindo feições cada vez mais modernas.

No processo de evolução social, a substituição do sistema de captura de esposas só se concretizaria com o surgimento da ideia de relacionamento de sangue; a reflexão sobre a consanguinidade e sobre os fatos naturais da reprodução estariam, assim, na base do desenvolvimento da noção de parentesco. A incerteza quanto à paternidade teria como resultado que os laços sanguíneos maternos, por serem evidentes, formassem a base de um sistema de parentesco por meio das mulheres; nesse sistema, as crianças passam a ser afiliadas às mães e não mais aos grupos, como no estágio anterior. Com o tempo esse sistema contribui, segundo o autor, para tornar os grupos exogâmicos heterogêneos, substituindo o sistema de captura de esposas: pela operação conjunta da exogamia e do sistema de parentesco através das mulheres, os grupos passam a contar com pessoas de diferentes linhas de descendência a ponto de ser possível o casamento no seu interior. Em decorrência das práticas exogâmicas, as mães de uma tribo passam a ser consideradas estrangeiras, da mesma forma que seus filhos, neste caso em razão do sistema de parentesco. Com o afrouxamento da prática de infanticídio, o casamento no interior desses grupos tornou-se viável e coerente com a regra de exogamia, uma vez que essas pessoas não possuíam parentesco com o grupo do pai, apenas laços de sangue com suas mães estrangeiras.

A análise de McLennan do casamento por rapto tornou-se paradigmática nas ciências sociais, sobretudo em virtude de estar associada às discussões acerca da exogamia e endogamia, conceitos que passaram a fazer parte do vocabulário antropológico a partir de Primitive Marriage. Em Principles of Sociology, obra em três volumes publicada entre os anos de 1882 e 1896, Herbert Spencer (1820–1903) seguiu a interpretação de McLennan, sugerindo, de modo semelhante, que o rapto de mulheres deu origem à exogamia nas etapas mais arcaicas da evolução social. Nessa mesma linha, John William Lubbock (1834–1913) propôs um esquema evolutivo que vai do casamento no interior do grupo (endogâmico) ao  casamento por captura (exogâmico), no qual as mulheres passam a ser consideradas bens individuais, levando às formas modernas de casamento. Em As estruturas elementares do parentesco (1949), Claude Lévi-Strauss (1908-2009) rechaçou as explicações de matriz mclenniana, argumentando que elas se baseiam em uma sequência histórica tão específica que seria impossível a sua verificação em todas as sociedades. No entanto, delas retira sua intuição fundamental: a exogamia expressa antes o caráter positivo da prescrição (de casamentos fora do grupo), do que o caráter negativo da proibição (de casamentos dentro do grupo), ideia que está na base da sua teoria da aliança matrimonial.

Como citar este verbete:
SILVA, Thiago Timóteo da. 2017. "Casamento por captura - John Ferguson McLennan". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/casamento-por-captura-john-ferguson-mclennan>

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
23/12/2017
autoria

Thiago Timóteo da Silva

bibliografia

LÉVI-STRAUSS, Claude, Les structures élémentaires de la parenté (1949), Paris, Mouton, 1967 (Trad. Bras. Mariano Ferreira. Petrópolis, Vozes, 1982)

LUBBOCK, John, The origin of civilization and the primitive condition of man, Londres, Longmans, Green, and Co, 1870

MCLENNAN, John Ferguson, Primitive Marriage, London, MacMillan & Co, 1865

SPENCER, Herbert, The Principles of Sociology, v.1, (1882), Londres, D. Appleton and Company, 1885