conceito
Estrangeiro - Meyer Fortes

No artigo “Strangers” (1975), escrito em homenagem ao antropólogo sul-africano Isaac Schapera (1905-2003), Meyer Fortes (1906-1983) pretendeu explicitar as instituições que regulam as relações entre os membros de uma dada comunidade e outros sujeitos que não pertencem a ela, por meio de uma análise do status político e jurídico do “estrangeiro”. Assim como Schapera, Fortes nasceu na colônia britânica do Cabo, na África do Sul, e realizou etnografias entre diferentes populações africanas quando foi aluno de Charles G. Seligman (1873-1940) e Bronisław Malinowski (1884-1942) na London School of Economics. Em sua definição da condição de “estrangeiro”, Fortes destaca duas instituições: a hospitalidade e a concessão de cidadania, analisando-as com base em dados etnográficos e históricos sobre os Tallensi e os Akan de Gana, onde trabalhou nas décadas de 1930 e 1940; sobre os Tswana do Sul da África, estudados por Schapera; e sobre os antigos gregos, romanos e hebreus. O exame da categoria “estrangeiro” nessas diferentes sociedades visava à definição da “cidadania política”, conceito central para a antropologia política que Fortes pretendia desenvolver.

Meyer Fortes, festival Golib entre os Tallensi, fotografia, c. 1934-37. In: Fortes, The Dynamics of Clanship among the Tallensi. Oosterhout: Anthropological Publications; Oxford: Oxford University Press, 1969. Prancha XVb.

Em meados do século XX, observa-se uma profusão de trabalhos na antropologia britânica sobre sistemas de parentesco a partir de etnografias realizadas nas colônias africanas, asiáticas e na Oceania. A função de linhagens, segmentos e grupos de descendência na organização social e política de diferentes povos africanos esteve no foco de autores do estrutural-funcionalismo como o próprio Meyer Fortes, também Edward E. Evans-Pritchard (1902-1973) e Alfred R. Radcliffe Brown (1881-1955). No texto de 1975, Fortes expande a discussão sobre organização social focada no parentesco, a que ele devotou a maior parte de sua obra, para incluir a figura do “estrangeiro”; ele desloca assim a definição da comunidade política para além das situações de conflito que Radcliffe-Brown havia pressuposto. Para este autor, o direito é sempre vigente em situações de conflito interno e o recurso à guerra dá-se em situações de confronto externo.

Para Fortes, a condição de estrangeiro não se constituía de aspectos individuais e nem resultava somente das relações diretas estabelecidas entre sujeitos. Através da instituição da hospitalidade, o “estrangeiro” - definido como um não parente que poderia ser encarado, inicialmente, com inimizade ou desconfiança - se vê convertido em hóspede ou convidado. Os diversos registros etnográficos e históricos das práticas de hospitalidade apontam, segundo Fortes, para uma relação que se fundaria no princípio geral segundo o qual, por razões religiosas, de prudência mágica ou de ética elementar, não se deve fechar as portas a um estranho, devendo-se ao menos lhe oferecer água, e, idealmente, uma refeição junto à família.

Salvator Rosa e estúdio, Odisseu e Nausicaa, c. 1655. Óleo sobre tela. William Randolph Hearst Collection. Los Angeles County Museum of Art (LACMA).

Fortes aderiu à análise que Julien Pitt-Rivers (1919-2001) havia desenvolvido em seu trabalho “The stranger, the guest and the hostile host” (1968), entre outros estudos, com o objetivo de se valer da hospitalidade para tratar do conceito de cidadania.  O que importa para o Fortes é a maneira pela qual, em certas sociedades passa-se da hospitalidade à concessão da cidadania ao hóspede – procedimento por meio do qual o estrangeiro cessa de ser o que é, para se tornar cidadão, ou algo semelhante. De acordo com o autor, no caso de o estrangeiro permanecer como residente na comunidade anfitriã, a passagem da hospitalidade à cidadania depende do equilíbrio institucional vigente nesta comunidade entre o que ele nomeia de “princípio da lei” e “princípio do parentesco”. A distinção permite que o antropólogo divise, no interior de seus dados, dois modelos diferentes de organização social, representativos, cada um, da prevalência de um desses princípios sobre o outro. De um lado, o modelo romano e tswana, segundo o qual a cidadania é obtida pelo cumprimento dos requisitos da lei; de outro, o modelo ateniense, hebreu e africano ocidental, no qual a cidadania é definida em razão do pertencimento a uma linhagem reconhecida como integrante da comunidade.

No primeiro caso, relativo à prevalência do “princípio da lei”, ainda que o modelo suponha privilégios intrínsecos à cidadania por direito de nascença, faz-se com que a concessão do status de membro da comunidade se estabeleça pela lealdade direta do cidadão à autoridade política, e não a uma linhagem ou a uma chefia específicas que estivessem relacionadas a essa autoridade. Nestas circunstâncias, a concessão de cidadania ao estrangeiro é independente de quaisquer arranjos políticos ou jurídicos de inclusão do sujeito no sistema de parentesco de qualquer linhagem da comunidade. Já no segundo caso, a prevalência do “princípio do parentesco” torna relevante a diferença entre o que Fortes chama de “estrangeiros internos” - os quais partilham da mesma origem, cultura, língua e religião de seus anfitriões - e “estrangeiros externos”, cuja origem, cultura, língua e religião diferem de seus anfitriões. Isso porque, para os “estrangeiros internos” haveria arranjos políticos e jurídicos que possibilitariam a sua inclusão em uma das linhagens do grupo, que são unidades estruturais da autoridade difusa de uma comunidade. Seria este o caso do casamento com um membro da comunidade ou da adoção, que poderiam conferir ao estrangeiro, pelo parentesco ou afinidade, ao menos uma “cidadania vicária” (definida como o exercício de todos os deveres e direitos de um cidadão nato, exceto os políticos e religiosos). Já para os “estrangeiros externos”, ainda que arranjos sociais diversos pudessem lhes conferir papéis funcionais na comunidade (como mercadores ou trabalhadores sem qualificação), dada a proibição aos casamentos e a adoção dentro da comunidade, faltaria a eles qualquer mecanismo de absorção, restando-lhes a marginalidade relegada aos forasteiros.

A descrição desses princípios, e dos tipos de interação que eles suscitam, permite que Fortes elabore a tese geral de que a probabilidade de incorporação de um “estrangeiro” à comunidade anfitriã como cidadão é função do grau em que a cidadania é definida como relação direta entre o membro da comunidade e sua autoridade política, seja ela centralizada ou difusa, em termos estritamente políticos e jurídicos. Assim, o pertencimento político não se definiria nem pelo parentesco e nem por qualquer outra credencial intermediária de participação, como a cultura, dizendo respeito à forma da organização de uma dada comunidade política.

A antropologia política de Meyer Fortes inspiraria, no final da década de 1960, os trabalhos de Abner Cohen (1921-2001) e Fredrik Barth (1928-2016) sobre a etnicidade, que influenciariam, nas décadas seguintes a antropologia social, inclusive a brasileira, principalmente aquela voltada às chamadas “comunidades tradicionais” e à migração internacional, a exemplo dos trabalhos de antropólogas como Giralda Seyferth (1943-2017), Joana Bahia e Manuela Carneiro da Cunha (1943-), em Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África (1985).

Como citar este verbete:
FERNANDES JÚNIOR, João Gilberto Belvel. “Estrangeiro - Meyer Fortes”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/estrangeiro-meyer-fortes

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
25/02/2025
autoria

João Gilberto Belvel Fernandes Júnior

bibliografia

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