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Funcionalismo

Em linhas gerais, o funcionalismo sustenta que a sociedade é um todo coerente formado por partes interdependentes, cada qual realizando uma ou mais funções para o ajustamento da totalidade. Como método amplo, diferentes domínios do conhecimento se valem do funcionalismo, como a economia, a arquitetura, a psicologia, entre outros. Na sociologia e na antropologia especificamente, a função social, categoria central para essa vertente, designa a relação desempenhada pelas unidades do sistema social (instituições, normas, valores, grupos etc.) para sua manutenção e integração, a partir da metáfora do organismo vivo, proveniente das ciências biológicas e áreas afins. O funcionalismo privilegia a perspectiva sincrônica, afeita à compreensão das relações sociais de uma estrutura social em um dado momento de tempo.

Em As regras do método sociológico (1895), Émile Durkheim (1858-1917) sustentou que, para explicar um fato social, o cientista deve determinar qual função ele desempenha para a manutenção de um todo coerente para, a seguir, identificar as causas dessa correspondência. Por fato social, o sociólogo entende modos de agir, sentir e pensar capazes de exercer uma coerção exterior e independente às consciências individuais. O método é utilizado em As formas elementares da vida religiosa (1912) para identificar a função do totemismo para a manutenção da estrutura das sociedades segmentares australianas. A noção de função social em Durkheim está intimamente relacionada à noção de integração social, isto é, ao grau de adesão de membros de dado grupo social a normas e valores. Se o grau dessa adesão é baixo, isso pode levar à ausência de regulação moral, também denominada de anomia social. Essas e outras ideias de Durkheim viriam a conhecer transformações substantivas, mostra a produção dos colaboradores de L’Année Sociologique, quando seu sobrinho Marcel Mauss (1872-1950) assume a direção da revista.

Duas mulheres adornadas com colares "soulava", feito de conchas vermelhas. Bronislaw Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental, 1922, prancha XIX. Fotografia.

Em solo anglo-saxão, Bronisław Malinowski (1884-1942) torna-se um dos principais representantes do funcionalismo. Crítico da perspectiva evolucionista, para a qual as diferenças culturais se distribuem no tempo, evoluindo em estágios, e da difusionista, que privilegia a irradiação e transmissão de culturas a partir de centros geográficos, Malinowski interpreta a cultura como todo integrado e interdependente resultante das funções desempenhadas entre as diferentes instituições culturais. Em sua tetralogia sobre a cultura trobriandesa, iniciada com Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) e concluída com Coral gardens and their magic (1935), estabelece conexões entre diferentes instituições dos trobriandeses, como o kula, circuito de trocas de bens simbólicos e materiais que permite integrar as comunidades num mesmo sistema. Nessas monografias é marcante o acento dado por Malinowski à observação empírica e ao trabalho de campo de timbre etnográfico. Posteriormente, o antropólogo sistematizou sua teoria e método em Uma teoria científica da cultura (1944), publicada logo após o seu falecimento; a cultura é concebida aí como uma aparelhagem instrumental (cujos componentes não devem ser vistos isoladamente), mobilizada para a satisfação de necessidades biológicas do grupo ou da coletividade.

Bronislaw Malinowski, "O anel do Kula", Argonautas do Pacífico Ocidental, 1922, mapa V.

Um conhecido aluno de Malinowski na London School of Economics foi Raymond Firth (1901-2002). Na obra Nós, os Tikopia: um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva (1936), Firth se distancia do funcionalismo de Malinowski ao deslocar a ênfase da satisfação das necessidades biológicas para o modo como as necessidades humanas são modeladas em estruturas sociais locais. Com Elementos de organização social (1951), por sua vez, introduz o conceito de organização social como contraponto à noção de estrutura social; a organização social enfatiza as escolhas individuais na constituição das relações sociais, o que leva Firth a incorporar a dimensão do tempo, a agência dos indivíduos e o conflito na análise da mudança social.

Folhas de rosto de Raymond Firth, "We the Tikopia", 1936. Fotografia na página esquerda: Pa Fenuatara, aristocrata tikopia e herdeiro da chefatura de Kafika, vestido para uma dança, com cabelos soltos

Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), grande responsável pela introdução das ideias de Durkheim na tradição antropológica anglo-saxã, é outro expoente do funcionalismo na Inglaterra. Em “Sobre o conceito de função nas ciências sociais” (1935), ele defende o estudo da estrutura social em sua sincronia e rejeita a ideia de que as funções sociais são universais ao defender que um mesmo costume social pode operar com funções sociais diferentes. Segundo Radcliffe-Brown, a premissa da unidade funcional de um sistema, postulada por Malinowski, deveria ser vista como hipótese. Para ele, em “Sobre a estrutura social” (1940), o estudo do antropólogo deve recair sobre a estrutura social, definida como rede complexa de relações sociais realmente existente, comparável e observável, cujos componentes são seres humanos em seus papéis sociais, isto é, pessoas (como pai em relação ao filho ou o tio em relação ao sobrinho). Nestes termos, a noção de função passa a se referir a atividades socialmente padronizadas que contribuem para a existência dessa estrutura. Amparado nessa concepção de estrutura social, postula em O método comparativo em Antropologia Social (1951) que o pesquisador deve se preocupar tanto com as condições de existência dos sistemas sociais quanto com as regularidades observadas nas mudanças sociais. Ao identificar premissas gerais sobre as sociedades humanas, o método comparativo complementa o método histórico, orientado para proposições particulares oriundos de uma sucessão de eventos. O pensamento de Radcliffe-Brown influenciaria as obras de Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973) e Max Gluckman (1911-1975), que desdobrarão suas teses em direções diferentes.

Folhas de rosto de A.R. Radcliffe-Brown, The Andaman Islanders, 1922. Fotografia na página esquerda: pescador atirando em peixes com arco-e-flecha nos corais de Port Blair

É possível observar ecos do funcionalismo no Brasil, sobretudo nos anos 1940, quando Radcliffe-Brown ministra aulas na Escola de Sociologia e Política em São Paulo entre 1942 e 1946. Egon Schaden (1913-1991) se vale da análise funcional para registrar a coerência da cultura Guarani em Aspectos fundamentais da cultura Guaraní (1954). Já Antonio Candido (1918-2017), em Os parceiros do Rio Bonito (1954), mobiliza a teoria de Malinowski sobre a cultura como um todo integrado que satisfaz necessidades biológicas. Em sua tese de doutorado, A função social da guerra na sociedade Tupinambá (1951), Florestan Fernandes (1920-1995) interessou-se pelo modo como a guerra, para os tupinambás quinhentistas e seiscentistas, desempenha funções que integram a cultura tupinambá, convertendo-a em um todo coerente. No ensaio “O método de interpretação funcionalista na sociologia” (1953), por sua vez, Florestan reconstrói o debate histórico sobre os principais conceitos do método funcionalista, revisando suas premissas e limitações.

Como citar este verbete:
FAGUNDES, Guilherme Olímpio. “Funcionalismo”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2023. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/correntes/funcionalismo

ISSN: 2676-038X (online)

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F
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