conceito
Etnocídio - Pierre Clastres

O conceito de etnocídio é discutido pelo etnólogo francês Pierre Clastres (1934-1977) no verbete “De l’ethnocide”, publicado originalmente na Encyclopaedia universalis (1974) e republicado como capítulo de sua obra póstuma Arqueologia da violência (1980). Em seu texto, Clastres reflete sobre a natureza e a significação do etnocídio e também sobre a vocação etnocida do mundo ocidental, a partir de uma perspectiva formal e histórica. A originalidade de sua tese reside em apontar a convergência entre a prática etnocida e a essência centralizadora e unificadora das “sociedades com Estado”, bem como a capacidade etnocida ilimitada própria dos Estados ocidentais, em razão do sistema capitalista, seu modo de produção e sua lógica de desenvolvimento econômico.

O precursor do debate sobre a violência etnocida, segundo Clastres, foi Claude Lévi-Strauss (1908-2009) que, em "Raça e história" (1952), destaca a importância de uma discussão ética sobre as relações entre violência e cultura. O uso pioneiro do termo etnocídio, por sua vez, coube ao etnólogo franco-vietnamita Georges Condominas (1921-2011), na obra L'exotique est quotidien (1965), em que o concebe como derivação do conceito jurídico de genocídio, ressaltando a especificidade do grupo ao qual a ação violenta era dirigida - uma minoria étnica - e seu propósito - o extermínio de uma cultura. Anos mais tarde, o etnólogo francês Robert Jaulin (1928-1996), em La paix blanche: introduction à l’ethnocide (1970), apresenta sua proposta de diferenciação entre as violências genocida e etnocida de acordo com a finalidade da ação: o extermínio físico (no primeiro caso) ou a destruição do "espírito" e da cultura de um povo (no segundo).

Ao revistar esse debate, apoiado em estudos históricos e etnográficos dos povos indígenas nas Américas, ao norte e ao sul do continente, Clastres defende ser o etnocídio a “destruição sistemática dos modos de vida e pensamento” de um povo, em contraste com a ação genocida que visa o assassinato de seus corpos. Dois outros fatores de diferenciação entre esses atos emergem em seu exame. O primeiro é a duração da ação: enquanto a eliminação física é imediata, a opressão cultural é exercida durante um longo intervalo, conforme o potencial de resistência dos povos oprimidos. O segundo é a natureza do tratamento dirigido à diferença. De acordo com Clastres, ambas as lógicas, genocida e etnocida, fundamentam-se na ideia de que os outros povos e culturas encarnam não apenas a diferença, mas a “má diferença”, que deve ser eliminada. No entanto, ao passo que a prática de aniquilação corpórea resulta da concepção desses outros como absolutamente maus e da negação da diferença, de modo diferente, a prática de destruição cultural decorre da admissão da “relatividade do mal na diferença" e, portanto, da possibilidade de transformação de outros pela imposição de determinado modelo.

© Denilson Baniwa, "A Amazônia é uma invenção", 2019. Rasura sobre livro oficial. Reprodução autorizada pelo artista.

Clastres avalia ser insuficiente uma análise que se restringe a afirmar a natureza e a função etnocida do Estado ocidental e propõe, em contrapartida, que a reflexão avance no sentido de uma análise histórica que responda à questão sobre o que faz o Ocidente ser etnocida. O antropólogo refuta a ideia de que o mundo ocidental é etnocida devido ao seu etnocentrismo, fundamentando-se em trabalhos etnográficos que permitiam a constatação de que todas as culturas são etnocêntricas (ou seja, consideram-se a “cultura por excelência”), embora nem todas sejam etnocidas. De modo inédito, Clastres aponta para a impossibilidade de compreender a vocação etnocida ocidental sem considerar sua articulação com a forma Estado. O autor sustenta que a capacidade etnocida está presente em todas as “sociedades com Estado”, isto é, em todas as sociedades dotadas de poder centralizado e coercitivo, em suas diferentes formas, sejam esses os “Estados bárbaros”, como o “Estado Inca”, ou os “Estados civilizados” ocidentais, como os nossos. Clastres salienta serem iguais a prática etnocida e o aparelho estatal no que diz respeito ao funcionamento e aos efeitos que produzem: a forma Estado, por seu intento unificador e centralizador, também teme e recusa a diferença e busca sua eliminação.

Embora inerente a todas as sociedades com Estado, Clastres defende ser a violência etnocida uma resposta à percepção de ameaças à máquina estatal e, portanto, seu exercício é inversamente proporcional ao grau de força de cada Estado. Nessa perspectiva, observa destacar-se a capacidade etnocida ilimitada dos Estados ocidentais, que se reflete em seu caráter etnocida absoluto (inclusive no interior da própria “civilização ocidental”) e em seu potencial genocida. A particularidade do mundo ocidental que o faz infinitamente mais etnocida, segundo o antropólogo, é o capitalismo, sua lógica de desenvolvimento econômico e seu modo de produção, a partir dos quais tudo e todos são úteis, devem ser utilizados e manterem-se produtivos de forma permanente e máxima.

Na literatura antropológica e etnológica brasileira recente, poucas análises tiveram como questão central a natureza do etnocídio, como indica o antropólogo Márcio Malta em Etnocídio para além das perdas culturais (2018). Estudos recentes como os do próprio Malta, de Luísa Molina (Terra, luta, vida: autodemarcações indígenas e afirmação da diferença, 2017) e de Helena Palmquist (Questões sobre o genocídio e etnocídio indígena, 2018) evidenciam a necessidade de renovar o exame teórico do problema a partir dos relatos e formulações dos povos indígenas sobre as violências das quais são alvo. Em suas conclusões, os autores ressaltam que concepções fundamentais de povos indígenas no Brasil, como a produção social de corpos e pessoas, podem ser conflitantes com a distinção entre uma morte de tipo física e outra cultural. Ainda assim, Molina e Malta convergem na avaliação de que a violência etnocida é parte do processo genocida, ao passo que Palmquist defende que as violências física, biológica e cultural praticadas contra esses povos ocorrem de maneira combinada e, portanto, são diferentes faces dos mesmos processos híbridos de destruição desses povos.

No parecer “Sobre a noção de etnocídio, com especial atenção ao caso brasileiro” (2015), o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1951-) examina discussões sobre as noções de etnia, de minoria e de indígena, e adverte sobre o risco da caracterização da prática etnocida de acordo com os fins da ação, sem considerar os seus meios. Segundo o autor, a proposta analítica de Jaulin pode permitir a interpretação de um etnocídio de tipo doloso, como resultado intencional e explicitamente admitido dos riscos e efeitos do ato, e outro de tipo culposo, resultado não intencional de outra ação, ainda que o agente reconheça e admita, de forma implícita, os efeitos etnocidas. A tipificação do crime de etnocídio nunca ocorreu, apesar de ser discutida pela comunidade jurídica internacional, mas relevantes conquistas legais nos cenários nacional e internacional, como o “Capítulo VIII – Dos Índios”, da Constituição Federal brasileira (1988), a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais (1989), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), tornam possível a criminalização de práticas que, pensadas a partir da teoria antropológica, podem ser compreendidas como etnocidas.

Como citar este verbete:
LANGONI, Giovana Pereira. “Etnocídio - Pierre Clastres”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2022. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/etnocidio-pierre-clastres

ISSN: 2676-038X (online)

[ Acesse aqui a versão em PDF ]

e
data de publicação
13/07/2022
autoria

Giovana Pereira Langoni

bibliografia

CLASTRES, Pierre, La société contre l’État : recherches d’anthropologie politique, Paris, Éditions de Minuit, 1974 (Trad. Bras. Theo Santigo. São Paulo, Cosac Naify, edição Cosac Naify portátil, 2013)

CLASTRES, Pierre, Recherches d’anthropologie politique, Paris, Seuil, 1980 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2004)

JAULIN, Robert, La paix blanche: introduction à l'ethnocide, Paris, Seuil, 1970

JAULIN, Robert (org.), L'ethnocide à travers les Amériques, Paris, Arthème Fayard, 1972

LÉVI-STRAUSS, Claude, “Race et histoire” (1952) In: Anthropologie structurale deux, Paris, Éditions Plon, 1973 (Trad. Bras. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify, 2013).

MALTA, Márcio. Maia, Etnocídio para além das perdas culturais: pessoas, corporalidades e a multiplicação dos maus-encontros, Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018

MALTA, Marcio Maia, “Os limites euroamericanos do conceito de genocídio: Pensando com os povos ameríndios sobre atualização da noção de etnocídio”, Anais da VI Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 2019, p. 65-81 Disponível em:  https://drive.google.com/file/d/1SqAdHupnzpTWWWxOcRyrxI1Bgm6OvSQM/view Acesso em: 31 de março de 2022.

MOLINA, Luísa Pontes, Terra, luta, vida: autodemarcações indígenas e afirmação da diferença. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade de Brasília, Brasília, 2017

MOLINA, Luísa Pontes, “As encruzilhadas das demarcações de TIs: ‘interesse nacional’, etnocídio e genocídio” In: Gustavo Kenner Alcântara, Lívia Nascimento Tinôco & Luciano Mariz Maia (orgs.), Índios, Direitos Originários e Territorialidade, Brasília, Associação Nacional de Procuradores da República, 2018

PALMQUIST, Helena, Questões sobre o genocídio e etnocídio indígena: a persistência da destruição, Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Pará, Belém, 2018

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, "Sobre a noção de etnocídio, com especial atenção ao caso brasileiro", sem local, 2015, Disponível em: https://www.academia.edu/25782893/Sobre_a_no%C3%A7%C3%A3o_de_etnoc%C3%A…. Acesso em: 31 de março de 2022