A reflexão sobre a chefia indígena percorre a obra de Pierre Clastres (1934-1977), constituindo uma dimensão fundamental de sua conceituação de uma sociedade contra o Estado, que renovou a antropologia política, ao transformar o campo de pesquisa sobre as formas indígenas da política. O tema está presente desde seu primeiro artigo, “Troca e poder: filosofia da chefia indígena” (1962) reeditado como segundo capítulo da coletânea A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (1974), onde o autor discorre sobre o aparente paradoxo de uma chefia sem poder nas sociedades ameríndias. A partir de balanço bibliográfico sobre a política nas terras baixas sul americanas, ele se posiciona contra a visão consolidada pelo Handbook of South American Indians (1949), editado por Julian H. Steward (1902-1972).
Relacionando adaptação ecológica à complexidade sociopolítica conforme o paradigma da ecologia cultural, Steward contrapôs os povos das terras baixas sul americanas, considerados desprovidos de instituição política, aos impérios andinos e aos cacicados circum-caribenhos, ambos de caráter autocrático. Segundo Clastres, entre o excesso e a falta, Steward foi incapaz de conceder aos ameríndios a justa medida do poder político. Essa posição foi por ele aprofundada em “Copérnico e os selvagens” (1969), resenha crítica ao Essai sur le fondement du pouvoir politique, de Jean-William Lapierre (1921-2007), obra comparativa de cunho evolucionista que postulava um grau zero da política ao qual corresponderiam os povos “primitivos”. Para Clastres, é preciso desvencilhar-se do etnocentrismo que toma o Estado como realização última da política na consideração das formas políticas indígenas, o que implica desfazer a associação entre política e coerção. Tal movimento aproxima Clastres do filósofo Étienne de La Boétie (1530-1563), autor do Discurso sobre a servidão voluntária (1576), como indica o próprio Clastres em “Liberdade, mau encontro, inominável” (1976) e em outros textos.
Em “Troca e poder”, Pierre Clastres toma como ponto de partida a reflexão de Robert Lowie (1883-1957) em Some aspects of political organization among the American Aborigines (1948), no qual o autor elenca os principais atributos do chefe ameríndio, que define como um titular chief. Segundo Lowie, o chefe tem função apaziguadora; desprovido de poder coercitivo, tem de recorrer à palavra. Deve ser assim um bom orador, capaz de realizar discursos ritualizados diariamente. Além disso, é incapaz de acumular excedente produtivo, devido à imposição de que seja generoso, doando seus bens ao grupo. A estes aspectos, Clastres acrescenta o privilégio da poliginia.
Dialogando com o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que identifica a origem da sociedade nas regras que impelem à reciprocidade entre os homens - como o tabu do incesto e a exogamia - o autor assinala que os elementos definidores da chefia são os signos cuja circulação define a atividade social: bens, palavras e mulheres. Mas, afirma o autor, ao considerar os circuitos de troca de cada um desses signos, nota-se que estes seguem apenas uma direção, rompendo o princípio de reciprocidade. Bens e palavras vão do chefe ao grupo, sem serem retribuídos, enquanto as mulheres vão do grupo ao chefe. Opondo-se à reflexão de Lévi-Strauss sobre a chefia Nambikwara em “The social and psychological aspects of chieftainship in a primitive tribe: the Nambikwara of Northern Mato Grosso” (1944), Clastres afirma que não se pode conceber este quadro como uma troca recíproca entre chefe e grupo - ou seja, os bens e palavras do chefe pelas mulheres do grupo - pois, segundo ele, a desigualdade da troca é insuperável.
Incapaz de retribuir a dádiva a ele concedida, o chefe está em eterna dívida com o grupo. Excluído dos circuitos de reciprocidade que constituem a atividade social, é exteriorizado, tornando-se incapaz de agir sobre a sociedade, o que explica sua impotência; exterior ao grupo, o chefe define seus limites, conferindo-lhe sua unidade frente a outros grupos sem com isso engendrar uma divisão interna, entre os que mandam e os que obedecem, nos termos de La Boétie. A chefia sem poder deve sua razão de ser à escolha da sociedade indígena, que funda o político sem permitir que este se descole de seu substrato sociológico originário, voltando-se contra ele. Esta crítica de Clastres ao estruturalismo é sintetizada por Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman (1957-) em “Pierre Clastres, etnólogo da América” (2001). Se para o estruturalismo lévi-straussiano a reciprocidade distingue os homens da natureza ao fundar a sociedade, Clastres mostra que a ruptura da reciprocidade distingue os homens entre si, fundando uma política. Se a ruptura da reciprocidade é para Clastres comum às sociedades, o sentido da dívida as diferencia. Como afirma em “O poder da palavra” (1973), é na relação entre palavra e poder que esta diferença se torna saliente. Se nas sociedades com Estado a palavra é o direito do poder, nas sociedades indígenas, não mais sem, mas contra o Estado, a palavra é um dever do chefe. Em ambos os casos, a reciprocidade é rompida, uma vez que essas falas não esperam resposta. Mas, se nas primeiras a palavra do poder é uma ordem, nas sociedades indígenas a palavra do chefe, dita por si mesma, se assemelha à palavra poética.
Como citar este verbete:
POUGY, Henrique. “Chefia indígena - Pierre Clastres”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/chefia-indigena-pierre-clastres
ISSN: 2676-038X (online)
Henrique Pougy
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CLASTRES, Pierre, “Copernic et les Sauvages”, Critique, n. 270, 1969. Republicado em Pierre Clastres, La Société contre l’Etat. Recherches d’anthropologie politique, Paris, Éditions de Minuit, 1974 (Trad. Bras. Theo Santiago. São Paulo, Cosac Naify, 2001)
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CLASTRES, Pierre, “Liberté, malencontre, innommable” In: É. La Boétie, Discours de la servitude voluntaire, Paris, Payot, 1976. Republicado em Pierre Clastres, La Société contre l’Etat. Recherches d’anthropologie politique, Paris, Éditions de Minuit, 1974 (Trad. Bras.Theo Santiago. São Paulo, Cosac Naify, 2001)
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