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Liminaridade e communitas - Victor Turner

Victor Turner (1920-1983), antropólogo britânico que dedicou boa parte de seus esforços intelectuais ao entendimento das simbologias subjacentes aos rituais, deu contribuição significativa à compreensão das práticas rituais ao refinar a noção de liminaridade e elaborar, a partir dela, o conceito de communitas. O autor concebe a ideia de liminaridade como correspondendo a um momento de margem dos ritos de passagem: fase ritual na qual os sujeitos apresentam-se indeterminados, em uma espécie de processo transitório de “morte” social, para, em seguida, “renascerem” e reintegrarem-se à estrutura social. Liminaridade é, portanto, uma condição transitória na qual os sujeitos encontram-se destituídos de suas posições sociais anteriores, ocupando um entre-lugar indefinido no qual não é possível categorizá-los plenamente. Segundo Turner, a vida social se movimenta a partir de um movimento dialético, envolvendo estrutura social e communitas, estrutura e antiestrutura, alimentado pelas práticas rituais.

Victor Turner, Rito de passagem Ndembu, A Floresta dos Símbolos

O antropólogo iniciou as reflexões sobre o tema em O processo ritual: estrutura e antiestrutura (1969), a partir de inspiração retirada de Os ritos de passagem (1909) de Arnold Van Gennep (1873-1957). Suas contribuições teóricas estão fundamentadas na análise de práticas rituais observadas entre os Ndembu, povo da região da África Central, e em uma ampla revisão da literatura antropológica disponível sobre a temática do ritual. Em sua  obra, Victor Turner concebe a liminaridade como condição social efêmera vivenciada por sujeitos temporariamente situados fora da estrutura social, dando origem ao que ele denomina communitas, isto é: uma forma de antiestrutura constituída pelos vínculos entre indivíduos ou grupos sociais que compartilham uma condição liminar em momentos especificamente ritualizados. Os sujeitos liminares agrupados pela communitas são marcados pela submissão, silêncio e isolamento, considerados como tábula rasa em relação à nova posição social a ser assumida após a conclusão do ritual de passagem. O autor opta pelo termo latim communitas à noção de comunidade, de modo a não conferir circunscrição espacial ao vínculos entre os sujeitos liminares, já que o caráter de antiestrutura da communitas está baseado em relações sociais e não em pertencimentos territoriais.

Turner expande a compreensão dos termos liminaridade e communitas para além dos contextos rituais classicamente analisados na antropologia, destacando que hippies, profetas, artistas, assim como integrantes de movimentos milenaristas e religiosos podem ser também considerados sujeitos liminares, que se agrupam em communitas diversas. Nesses casos, no entanto, a condição liminar parece ser permanente já que tais sujeitos se opõem ou, no mínimo, desafiam a estrutura social como única forma de organização social possível. No caso dos movimentos milenaristas, por sua vez, a condição liminar mostra-se transitória, durável até o momento em que as profecias nas quais o grupo acredita não se concretizam. Independente do contexto ritual, Turner destaca que, além estarem situados em uma condição de indiferenciação social por nome, status e gênero, os integrantes da communitas podem ser também marcados pela suspensão (ainda que efêmera) do direito à propriedade e das obrigações de parentesco.

De modo a fundamentar suas teses, o antropólogo recorre às etnografias de E. E. Evans-Pritchard (1902-1973), entre os Nuer, e de Meyer Fortes (1906-1983), entre os Tallensi, para mostrar que liminaridade e communitas evidenciam o que ele genericamente denomina “o poder dos fracos”. Ele afirma que em sistemas de parentesco patrilineares, nos quais os atributos jurídicos e políticos são transmitidos pela ascendência paterna, as mulheres encontram formas – muitas vezes justificadas pela mitologia e pelas práticas rituais – de marcar a importância da descendência materna na constituição pessoal e mística dos sujeitos. Em sistemas de parentesco matrilineares, onde o status jurídico e político é dado pela ascendência materna, por sua vez, os indivíduos que desenvolvem estratégias liminares para demonstrar sua importância na estrutura social seriam, inversamente, os homens. Esses exemplos permitem assinalar que, diante do confronto com a estrutura social, os sujeitos em condição liminar constituem uma solidariedade proporcionada pelo estabelecimento da communitas para marcar a relevância de sua posição social em contexto político, cultural e jurídico determinado. Turner conclui que toda estrutura social, acompanhada pelos ritos que concedem direitos de acesso a determinadas esferas de poder ou status, coopera para a existência de uma antiestrutura na medida em que produz sujeitos liminares, transitórios ou não, que se agrupam em communitas. Assim, a relação entre estrutura e communitas traduz uma dialética imprescindível à vida social em qualquer contexto.

Posteriormente, os conceitos de liminaridade, communitas e drama social serviram como pontos de partida para que Turner, a partir de seu interesse pelo universo do teatro, problematizasse as interações possíveis entre dramas sociais e dramas estéticos. Seu encontro teórico com Richard Schechner (1934-) originou um novo campo de estudos na disciplina, denominado antropologia da performance, que se beneficia das imbricações entre a antropologia e o teatro, e que vem encontrando grande repercussão no Brasil.

Como citar este verbete:
NOLETO, Rafael da Silva & ALVES, Yara de Cássia. 2015. "Liminaridade e communitas - Victor Turner". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/liminaridade-e-communitas-victor-turner>

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
08/12/2015
autoria

Rafael da Silva Noleto e Yara de Cássia Alves

bibliografia

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