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E eu não sou uma mulher?

E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo (primeira edição brasileira de 2019) é de autoria da feminista negra estadunidense e ativista bell hooks (1952-2021), nascida na cidade de Hopkinsville, no estado de Kentucky, no período de leis, práticas e discursos segregacionistas conhecido como a era Jim Crow (1867-1965). A obra foi publicada originalmente em 1981, nos Estados Unidos, com o título, Ain’t I a Woman?: Black Women and Feminist. Trata-se de um trabalho de juventude, que introduz ideias que seriam desenvolvidas e consolidadas ao longo da trajetória pessoal e intelectual da autora. Escrevê-lo foi o caminho utilizado para elaborar a negritude que habitava o seu corpo e, do mesmo modo, entender o seu lugar e de outras mulheres negras na sociedade, sistematicamente marginalizadas e esquecidas. Interessava-lhe não somente verificar como o sexismo atravessava as relações sociais, conforme evidenciava o feminismo hegemônico em expansão no período, mas como a raça e o racismo circunscreviam o lugar da mulher negra na sociedade estadunidense.

bell hooks, Ain't I a woman?

O livro nasce, como ela mesma diz em sua segunda obra, Teoria Feminista. Da margem ao centro (1984), da ausência de uma teoria que contemplasse as mulheres negras. Nele, hooks grafa seu nome em letras minúsculas (registrada como Gloria Jean Watkins, ela adota o nome da bisavó materna, Bell Blair Hooks), assinatura que acompanha suas produções, desde os primeiros poemas e contos, lançados na década de 1970. O título do volume é inspirado no emblemático discurso realizado na Convenção dos Direitos das Mulheres, em Ohio, em 29 de maio de 1851, pela ativista Sojourner Truth (1797-1883), ex-escravizada, abolicionista e precursora do feminismo negro. O discurso tornou-se uma referência fundamental para o livro de hooks e para a reflexão contemporânea do feminismo negro, por ter questionado a definição do que era ser mulher e negra, ainda no século XIX, e por ter desconstruído um ideal naturalizado de “mulheridade”. Truth interpela certa ideia universalizante e generalizante de mulher, destacando os privilégios de mulheres brancas; aborda ainda as assimetrias de sexo, raça e gênero no espaço das igrejas, a maternidade negra negada e o genocídio dos filhos das mulheres negras pela violência do Estado.

A obra é composta de cinco capítulos. No primeiro, “Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada”, a autora discorre sobre o “culto à verdadeira mulheridade”, ideário presente no decurso do século XIX no seio da sociedade estadunidense; a construção da “mulheridade” toma como modelo exclusivo a mulher branca: senhora do lar, reprodutora da família, subserviente ao marido, o que gera a desqualificação da mulher negra. Ainda neste capítulo, hooks evidencia a violência e o estigma sexual, frutos dos séculos de regime escravocrata, quando os corpos femininos eram utilizados como “latrina sexual”. No segundo, “A desvalorização contínua da mulheridade negra”, desenvolve a reflexão primeira, colocando o foco sobre o controle social, a hipersexualização, o controle excessivo sobre os corpos e desejos de mulheres negras em função do sexismo e da misoginia de homens negros e brancos.

No terceiro capítulo, “O imperialismo do patriarcado”, a autora aprofunda suas ideias acerca do sexismo, a partir de exemplos como o da feminista negra, pioneira na luta pelos direitos civis e do sufrágio, Mary Church Terrell (1863-1954). O quarto, “Racismo e feminismo”, por sua vez, evidencia o racismo contido no próprio movimento feminista, ao afirmar que, no interior da  sociedade estadunidense, as mulheres brancas possuíam privilégios, o que as distinguia das mulheres negras. hooks encerra a obra com “Mulheres negras e o feminismo”, recuperando nomes e fatos de mulheres negras citadas no conjunto da obra, sinônimos de luta contra o racismo e o sexismo, deixando evidente sua visão crítica acerca do movimento feminista da época.

A noção de “mulheridade negra” (black womanhood), central no livro de 1981, se faz presente no conjunto da obra. Entretanto, em escritos subsequentes, como em Teoria feminista: da margem ao centro (1984), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (1989) ou mesmo em Irmãs do inhame: mulheres negras e autorrecuperação (1993), a noção aparece de modo secundário. Atribui-se a ausência dessa categoria ao amadurecimento intelectual experimentado pela autora, que passa a priorizar expressões que não essencializem a condição feminina negra. Para dar conta da complexidade que envolve a temática, outros termos foram sendo ativados, como o de interseccionalidade, sistematizado em 1989 a partir das investigações da jurista e professora estadunidense Kimberlé Creshaw (1959-). Mesmo quando o termo não é utilizado por bell hooks, as ideias que ele carrega perpassam todos os escritos da autora, que enfatizam as categorias de raça, classe e gênero para analisar a condição da mulher negra.

Após mais de quarenta anos, E eu não sou uma mulher? segue ecoando e inspirando elaborações antropológicas e sociológicas de autoras negras que buscam, a partir das suas experiências, descrever e refletir sobre as opressões que contribuíram para o não lugar da mulher negra. Por exemplo, os estudos empreendidos pela socióloga estadunidense Patricia Hill Collins (1948-) sobre as imagens de controle nos oferecem importantes aportes para compreender o modo como as mulheres negras são vistas e representadas; imagens que são construtos sociais estabelecidos desde o período da escravização e perpetuados posteriormente.

Em diálogo com hooks, autoras e ativistas dentro e fora do Brasil voltam-se para a descrição e análise das condições de existência e as lutas de mulheres negras em diferentes contextos, propondo epistemologias disruptivas capazes de trazer à cena questões fundamentais para a compreensão e transformação dessas realidades. Lembremos, entre outros, os nomes de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Lélia Gonzalez (1935-1994), Beatriz Nascimento (1942-1995), Conceição Evaristo (1946-), Sueli Carneiro (1950-), Paulina Chiziane (1955-) e Carla Akotirene (1980-). As obras de hooks e dessas intelectuais têm recebido atenção e reconhecimento recentes nos meios acadêmicos, ainda que transitem por espaços que não somente os da universidade, instituição ainda predominantemente branca, marcada por legado eurocêntrico e colonial.

Como citar este verbete:
ROCHA, Letícia. “E eu não sou uma mulher?”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/e-eu-nao-sou-uma-mulher

ISSN: 2676-038X (online)

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e
date of publication
30/07/2025
authors

Letícia Rocha

bibliography

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CARNEIRO, Sueli, Dispositivo de racialidade. A construção do outro como não ser como fundamento do ser, Rio de Janeiro, Zahar, 2023

CHIZIANE, Paulina, Balada de amor ao vento, Maputo, AEMO, 1990

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hooks, bell, Ain't I a Woman? Black Women and Feminism, Boston, South End Press,1981 (Trad. Libanio Bhuvi, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2019)

hooks, bell, Feminism Is for Everybody: Passionate Politics, Boston, South End Press, 2000 (Trad. Ana Luiza Libânio, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2019)

hooks, bell, Talking Back: Thinking feminist, thinking Black, Boston, South End Press, 1989 (Trad. Cátia Bocaiuva Maringolo, São Paulo, Elefante, 2019). 

hooks, bell, Feminist theory: from margin to center, Pluto Press, 1984 (Trad. Rainer Patriota, São Paulo, Perspectiva, 2019).

hooks, bell, Sisters of the yam: black women and self-recovery, Boston, South End Press, 1993 (Trad. floresta, São Paulo, Martins Fontes, 2023) 

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TRUTH, Sojourner, Acaso no soy una mujer?, Buenos Aires, Galerna, 2021