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A representação coletiva da morte

A importância do ensaio A representação coletiva da morte (1907) do antropólogo francês Robert Hertz (1881-1915) reside em antecipar debates que tomarão protagonismo na antropologia posterior, por exemplo em obras de Arnold Van Gennep (1873-1957) e Victor Turner (1920-1983) sobre ritos de passagem e liminaridade, avançando discussões sobre a centralidade dos rituais na vida social, sobre a sua função minimizadora de efeitos nocivos diante de mudanças de estados vividas pelas sociedades, e chamando a atenção ainda para importância das etapas intermediárias, ambíguas e indefinidas, presentes em diversos ritos. Hertz realiza um estudo sobre práticas e crenças relativas à morte com foco nas duplas exéquias para mostrar que não se está diante de um fenômeno inteligível apenas em âmbito fisiológico e emocional, portanto individual, mas de um processo de ruptura enfrentado pelo grupo social. Segundo ele, as representações rituais não se restringem à ideação da morte como fenômeno físico nem às mudanças acontecidas no corpo. A emoção suscitada nos vivos, suas crenças, sentimentos e ritos sociais variam, dentre outros fatores, de acordo com o valor social do defunto, como evidencia Hertz com exemplos acerca de formas diversas de lidar com a morte, caso seja o caso de um chefe, de um estrangeiro, um escravo ou uma criança. Do ponto de vista etnográfico, lança mão de informações majoritariamente sobre grupos da Indonésia, mas também sobre os Bantu e polinésios, bem como os povos indígenas de Madagascar, da Austrália Central e da América do Norte, em observância ao método comparativo, sinalizando haver em todos eles obrigações morais e tabus em relação ao cuidado com a morte e com os mortos, que encontram tradução em práticas cujo objetivo principal é o reequilíbrio social, abalado quando da perda de um membro do grupo.

O ponto de partida são as diferenças entre os ritos que se dão logo após a morte e os definitivos: os primeiros compõem as exéquias que iniciam o processo de separação entre o morto e o grupo; os segundos, concluem e reestruturam a vida social, reestabelecendo vínculos abalados com a morte. O período inicial, denominado “intermediário”, divide noções e práticas conforme se refiram ao corpo do defunto, à sua alma ou aos sobreviventes. Quanto ao corpo, a elaboração de sepulturas provisórias intentam isolar o morto até o sepultamento final. Neste momento são obtidos recursos para realizar as cerimônias finais e acompanha-se a decomposição do corpo: a matéria em transformação e os líquidos por ele emanados são observados, pois representam uma ameaça aos sobreviventes e ao próprio corpo do defunto. Tal fase é imprescindível para que a alma do defunto deixe de pertencer ao mundo dos vivos e possa ser transportada ao reino dos mortos. Durante o transcurso entre os dois mundos, à sua margem, a alma atravessa um período de espera, caracterizado pela imposição de provas e sofrimentos aos vivos, que devem dela cuidar sob ameaça de sanções. Estes realizam os rituais necessários tanto para que a alma complete o seu percurso, visando o descanso definitivo, quanto para se livrarem do perigo encarnado por sua presença. Os encargos deste período têm também os vivos como foco. Os laços com o morto os contaminam e a participação na vida social lhes é vetada ou limitada enquanto durar o estágio de impurezas, sendo a intensidade de tais prescrições proporcional à proximidade com o defunto: quanto maiores os vínculos, maiores os riscos de contágio que representam ao grupo social e maior a rejeição que este impõe.

© Sylvia Caiuby Novaes, 1986. Aldeia Bororo do Garças. "No funeral Bororo o aroe-maiwu é literalmente a alma nova, um homem da metade oposta à do morto, que é escolhido para representá-lo e homenageá-lo". Reprodução autorizada pela autora.

As exéquias definitivas têm um triplo objetivo. O primeiro consiste em dar aos restos do defunto uma sepultura permanente, ocorrendo uma transformação de seu caráter: enquanto nas exéquias intermediárias predominava o isolamento do corpo, devido à repulsão e ao temor que provocava nos vivos, as cerimônias do sepultamento definitivo promovem um caráter coletivo de culto ao morto. O segundo visa dar repouso à alma, levando-a à sociedade dos mortos. Tais cerimônias não eximem os vivos de cuidado – o caminho para o outro mundo é árduo e a alma precisa de ajuda para enfrentá-lo, por meio de encantamentos e músicas, de dança e do posicionamento dos restos em local definitivo. O sofrimento vivenciado e a hostilidade alimentada em relação aos vivos cessam, e a natureza de sua ligação é transformada.

Finalmente e como terceiro intuito, o conjunto de cerimônias objetiva liberar os vivos do luto, reintegrando-os à comunidade e rompendo os vínculos ambivalentes que os ligavam ao morto. Por meio de banquetes, sacrifícios, banhos e retorno ao uso de vestuário e acessórios próprios à sua posição social, os sobreviventes podem reincorporar sua rotina e papéis em meio à sociedade. Hertz aponta, assim, uma correspondência direta entre os ritos que introduzem o morto no mundo dos ancestrais e os que restituem os sobreviventes ao convívio social, bem como a significação política que a morte ganha: a construção do mundo dos mortos reforça o mundo dos vivos.

Como citar este verbete:
PATRIARCA, Letizia & LIMA, Lux Ferreira. “A representação coletiva da morte”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/obra/representacao-coletiva-da-morte

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
17/12/2015
autoria

Letizia Patriarca e Lux Ferreira Lima

bibliografia

GENNEP, Arnold van, Les rites de passage, Paris, Emile Nourry, 1909 (Trad. Bras. Mariano FerreiraApresentação de Roberto Da Matta. 3ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011)

HERTZ, Robert, “Contribution a une étude sur la représentation collective de la mort”, L’Année Sociologique, Presses Universitaires de France, Paris, 1907

TURNER, Victor, The forest of symbols. Ithaca, Cornell University Press, 1967