conceito
Violência - Veena Das

A violência é um dos temas centrais da obra da antropóloga indiana Veena Das (1945-), que tem como um de seus eixos a reflexão sobre como grandes acontecimentos históricos e políticos se desdobram em situações cotidianas. Nesse contexto, o problema da violência, de longa tradição nas ciências sociais e na antropologia, assume contornos inovadores em função de uma “perspectiva subjetivista”, atenta às experiências cotidianas, narrativas, emoções e percepções dos sujeitos. A dimensão da violência que a autora privilegia relaciona-se à atmosfera por ela produzida e que se infiltra nas relações sociais.

A tentativa de compreender o modo como a violência afeta a vida ordinária aparece nos anos 1980, a partir de trabalho de campo realizado em regiões periféricas de Nova Deli, capital da Índia. Em um dos primeiros textos que escreveu sobre o tema, “Violence, victimhood and the language of silence” (1985), em parceria com o psicólogo indiano Ashis Nandy (1937-), a autora constrói um campo de análise que a afasta das classificações e sínteses sobre o fenômeno. Segundo os autores, a violência não deve ser definida a partir de sua incidência, de suas supostas causas e consequências, tampouco a partir de tipologias, mas como experiência relacionada a processos políticos, atravessada por noções de família e de parentesco, e pela forma como as pessoas utilizam a linguagem para expressar dor e sofrimento. A violência é considerada, assim, em sua dimensão ativa: o que produz, que relações transforma e como se dão essas transformações. A questão da narrativa, ou seja, como tais experiências disruptivas podem (ou não) ser expressas, também compõe parte importante da perspectiva dos autores, que será desdobrada em outros dos trabalhos de Veena Das.

Em Vidas e palavras: a violência e sua descida ao ordinário (2020), a antropóloga oferece um relato sobre como sua própria trajetória intelectual se relaciona à violência. Dois episódios da história indiana - a Partição da Índia, em 1947, que afetou mais de 14 milhões de pessoas pertencentes a grupos étnicos ou religiosos muçulmanos, hindus e sikhs, e os tumultos após o assassinato da primeira ministra Indira Gandhi (1917-1984) por seus seguranças sikhs, em 1984 - são tomados como eventos e colocados em relação às narrativas de mulheres comuns, cuja voz nem sempre é considerada quando se trata de compreender acontecimentos históricos e políticos. Por meio dessas experiências, torna-se possível observar a relação entre fatos marcantes da política indiana, coletividades étnicas, grupos familiares e a população em geral; as narrativas oficiais e a representação hegemônica dos episódios perdem força diante de outras narrativas, especialmente a de mulheres que tiveram suas vidas por eles afetadas. A violência assume, então, dimensões e perspectivas distintas, revelando sua presença na onda de assassinatos, na materialidade dos corpos mortos que se empilham nos bairros, nos rumores sobre mulheres estupradas e sequestradas, nas ameaças de violação das regras e dos padrões de comportamento até então conhecidos. Compreender a violência no cotidiano não significa desconsiderar processos sociais mais amplos. As reflexões sobre o sofrimento - abordado como “sofrimento social” - colocam em relação a experiência humana e as forças sociais atuantes em acontecimentos violentos, revelando-se, por exemplo, na incapacidade das pessoas de conduzirem atividades rotineiras, como o asseio e os afazeres domésticos. Nessa perspectiva, a violência do Estado-nação inclui não só atos como expulsões e assassinatos, mas também narrativas “generificadas” - como a do irmão que instruiu a irmã a se envenenar caso a residência da família fosse invadida; tais narrativas constroem os corpos e as subjetividades das mulheres como algo em constante perigo.

© Nalini Malani. Mother India: Transactions in the Construction of Pain, 2005. Cinco canais de video, som. Still de Instalação, 5a. Bienal de Taipei, 2006. Reprodução autorizada pela artista.

© Nalini Malani. Mother India: Transactions in the Construction of Pain, 2005. Cinco canais de video, som. Still de Instalação, 5a. Bienal de Taipei, 2006. Reprodução autorizada pela artista.

A inspiração advinda da filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), por sua vez, levará Veena Das a demonstrar que as respostas à violência não podem ser procuradas exclusivamente no domínio da palavra, pois estamos diante de uma experiência que compreende a dimensão do indizível. As possibilidades de voltar a habitar um mundo devastado são construídas discursivamente, mas não apenas narrativamente; afinal, o rumor, o lamento, o luto, o silêncio, e mesmo o testemunho, são formas expressivas que não necessariamente se apoiam nas palavras. Mas, ao recuperar tais dimensões, a autora afasta-se do sentido religioso da noção de testemunho, argumentando que testemunhar a violência é falar em nome da “morte das relações”, o que se refere tanto às relações íntimas e às familiares, quanto às relações sociais mais amplas, em que o Estado inscreve no corpo das mulheres signos de exclusão e sacrifício. Assim, violência e dor, violência e sofrimento são partes constitutivas da experiência humana que afeta, especialmente, a subjetividade das mulheres. É possível dizer que, para Veena Das, a violência dá acesso a relatos construídos de forma complexa entre corpos e linguagens, no plural, já que a autora considera ser o silêncio também parte da linguagem. Desse modo, a violência pode ser não só objeto do conhecimento antropológico, mas uma experiência capaz de conectar pessoas por meio de subjetividades.

Nos últimos anos, a teorização de Veena Das sobre violência tem influenciado um número crescente de estudos realizados no Brasil. Isso se dá a partir, sobretudo, de sua proposta de refletir sobre as formas de violência que estão no nível cotidiano e ordinário da vida e que são experiências constitutivas do processo de subjetivação, bem como sobre as possibilidades – na narrativa e no texto etnográfico – de expressar essas violências. É possível localizar reverberações do seu pensamento de maneira geral, e em particular, sobre violência, em trabalhos de Mariza Peirano (1942-), interessada em compreender tendências e perspectivas contemporâneas da antropologia. Mais recentemente, os escritos de Veena Das têm sido inspiração importante para estudos, sobretudo em perspectiva etnográfica, a respeito de processos estatais e gênero, como os realizados por pesquisadoras ligadas ao Distúrbio – dispositivos, tramas urbanas, ordens e resistências, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A relação entre violência e sofrimento social bem como seus efeitos sobre corpos e identidades, presente nos escritos da autora, vem sendo exploradas por pesquisadoras do Núcleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo (NUPACS), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este verbete:

PARREIRAS, Carolina & LACERDA, Paula. 2021. "Violência - Veena Das". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/violencia-veena-das

ISSN: 2676-038X (online)

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V
data de publicação
24/07/2021
autoria

Carolina Parreiras e Paula Lacerda

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