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Sobre o sacrifício

No ensaio clássico Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício (1899), os antropólogos franceses Marcel Mauss (1872-1950) e Henri Hubert (1872-1927) compreendem o sacrifício como um rito que põe em movimento o conjunto das coisas sagradas às quais se dirige; procedimento que estabelece uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, ou seja, de um ser vivo destruído durante a cerimônia. Dedicados ao esquema do ritual, os autores investem na compreensão da unidade do sistema sacrificial, e não em suas origens.

Os sacrifícios se distinguem em pessoais, que incidem sobre a pessoa do sacrificante, e objetivos, que incidem sobre um objeto, por exemplo, uma casa. Atuam no rito: o sacrificante, que oferece o sacrifício (e que na entrada do culto é progressivamente afastado do profano e preparado para as novas condições que experimentará ao se aproximar do sagrado), e o sacrificador, intermediário que auxilia o sacrificante evitando erros funestos e agindo como um mandatário do mesmo. Assim como o sacrificador é previamente consagrado, também o local e os instrumentos do sacrifício são purificados, antes e/ou durante o rito. Sacrificante, sacrificador, local e instrumentos concentram-se em torno da vítima, cuja aniquilação constitui o ato essencial do sacrifício. A vítima, assim como o sacrificante, passa por um longo processo que a retira do mundo profano e a leva para o mundo sagrado, de modo a tornar possível a comunicação entre os dois mundos. Tanto a entrada quanto a saída do sacrifício exigem um conjunto de ritos mediante os quais os participantes são preparados para o afastamento e o retorno a vida comum.

Para Mauss e Hubert, há dois tipos de sacrifício: o de sacralização e o de dessacralização (ou de expiação). No primeiro, onde as forças de consagração são levadas da vítima ao sacrificante, destacam-se os ritos de entrada. No segundo, que transmite as impurezas religiosas do sacrificante à vítima, eliminando-as, destacam-se os ritos de saída. Ressalta-se que estes dois tipos de sacrifício são categorias analíticas abstratas, uma vez que estas formas rituais ocorrem conjuntamente e não em oposição. Nos sacrifícios agrários, por exemplo, seria necessária, primeiro, a dessacralização da vítima – o fruto da terra –, para que a liberação do espírito divino residente naquela planta e a consequente sacralização dos novos campos de cultivo se tornem possíveis.

Sacrifício de cavalo, Mewar Ramayana, 1649, Biblioteca BritânicaSegundo os autores, a temporalidade própria dos sacrifícios agrários engendrou a passagem do que é chamado de “sacrifício ao Deus” para aquilo que se conhece como “sacrifício de Deus”. Por conta da repetição sazonal dos mesmos rituais agrários, as vítimas sacralizadas para estes cultos sacrificiais se tornam, com o tempo, personalidades morais, identificadas com um nome e passam a existir independente dos sacrifícios. Este seria o germe das religiões modernas, cujos deuses teriam se formado a partir de contos míticos surgidos para que fosse possível falar dessas novas pessoas morais. Ou seja: foi o sacrifício que forneceu os elementos da simbólica divina.

Enquanto os sacrifícios ao Deus colocam em processo relações de trocas dos seres profanos com os seres sagrados por meio da vítima – o agente intermediário entre os dois mundos, que pode fazer com que estes se interpenetrem sem deixar de serem distintos -, firmando, assim, diferentes contratos entre os habitantes destes dois universos; o sacrifício de Deus representa a abnegação total, uma vez que o deus, ao sacrificar-se, se dá sem retorno. Além disso, o sacrifício de Deus é aquele que evidencia de modo mais explícito o poder da religião de se fazer existir, já que pertence de modo mais marcado à esfera do imaginário. É por meio do sacrifício, da abnegação do indivíduo, que as consciências particulares são constantemente lembradas da presença das forças coletivas, e que os indivíduos, sacrificantes, podem se valer da força social para buscar seus objetivos particulares. Demonstra-se, assim, nos termos de Mauss e Hubert que as noções religiosas existem, objetivamente, como fatos sociais.

Como citar este verbete:
CHIQUETTO, Rodrigo Valentim & SANTOS, Valéria Oliveira. 2015. "Sobre o sacrifício". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/sobre-o-sacrificio

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
08/12/2015
autoria

Rodrigo Valentim Chiquetto e Valéria Oliveira Santos

bibliografia

MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri, “Essai sur la nature et la fonction du sacrifice”, Année sociologique, n. 2, 1899 e republicado em MAUSS, M. Oeuvres 1. Les fonctions  sociales du sacré, Paris, Éditions de Minuit, 1968 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2013).