autor
Sandra Benites

Nascida na Terra Indígena Porto Lindo, município de Japorã (MS), em 1975, Sandra Benites é mãe, pesquisadora e ativista Guarani. Atua como antropóloga, curadora de arte e educadora. Destaca-se por suas lutas em defesa dos direitos dos povos indígenas, sobretudo da demarcação dos territórios e da educação Guarani. Suas reflexões emergem de experiências com o “conhecimento das mulheres Guarani” (kunhangue arandu), resultando em debates e trabalhos acadêmicos, que fazem frente à colonização do conhecimento imposto por certo modo hegemônico de produção de saberes que pouco se dedicou às mulheres indígenas, não apenas no Brasil, mas nos diversos países habitados pelos povos Guarani. Benites realizou curadorias em museus – como a exposição Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena (2017) – e atuou em assessorias de projetos de educação, por exemplo, em iniciativas junto à Secretaria de Educação do Município de Maricá (RJ). Dentre suas publicações encontram-se artigos nos volumes Descolonizando a museologia e Ações e saberes Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng em foco, ambos de 2020.

© Gabriela Portilho / The New York Times, 2020. Reprodução gentilmente autorizada pela fotógrafa.

No final dos anos 2000, em visita à aldeia Boa Esperança (ES), Ara Rete – como é conhecida entre o seu povo Guarani Nhandewa – iniciou atividades de agente comunitária de saúde. Em 2003, ingressou no Programa de Formação de Professores Guarani, intitulado "Kua’a-Mbo’e (Conhecer, Ensinar)", fomentado por Secretarias de Educação Estaduais, pelo Ministério da Educação e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em seguida, começou a lecionar para turmas de crianças e adolescentes na aldeia Três Palmeiras (ES), onde permaneceu até 2012. Em 2010, a convite do historiador José Ribamar Bessa Freire, professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, passou a integrar o Observatório de Educação Escolar Indígena (OEEI), vindo, assim, a se envolver mais sistematicamente em debates e reivindicações no campo da educação. A experiência no OEEI alimentou as críticas da pesquisadora ao modelo institucional de educação escolar indígena, as quais ela desenvolveu em sua monografia de conclusão de curso e sua dissertação de mestrado. Nesses trabalhos, refletiu sobre o ensino tradicional guarani como possibilidade de renovação “guaranizada” para as estruturas escolares impostas pelo Estado brasileiro, que insistem na opressão e no silenciamento dos conhecimentos dos povos indígenas, a despeito do reconhecimento legal do direito desses povos a políticas de educação diferenciada. Sustentando um conceito de “fronteira”, embasado no ywy mbyte (“o centro do lugar que se espalha para o outro lado”), Benites sustenta que a possibilidade do “bem-viver” (teko porã) encontra-se ancorada no respeito à diferença.

Na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina, Benites defendeu a monografia intitulada Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ. Fundamento da pessoa Guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola (2011), na qual aborda as diferenças entre o modo de “educação tradicional do povo Guarani” e a “educação escolar indígena”. O primeiro está ligado ao sonho (xara’u) e à oralidade (ñe’e), enfatizando as experiências vividas por crianças e adolescentes no mundo da aldeia. O segundo é imposto pelo Estado brasileiro e não considera os saberes tradicionais (mbya arandu) do povo Guarani. A autora defende a necessidade de um diálogo entre os dois modos de produção de conhecimento – indígenas e não indígenas – para que o processo de escolarização desses povos se estruture nas próprias vivências dos conhecimentos Guarani.

Na dissertação de mestrado, Viver na língua Guarani Nhandewa (Mulher falando), defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, em 2018, Benites conferiu protagonismo às histórias coletivas das mulheres indígenas, jogando luz sobre as narrativas e o modo de “caminhar no mundo” (guata) das mulheres Guarani Nhandewa. Nessa reflexão, o corpo da mulher Guarani (kunhã rete) mostra-se fundamental, pois ele é o lugar em que se imbricam sabedoria, território e língua, e onde são produzidas as diferenças dos povos indígenas diante dos juruá (os não indígenas, os “brancos”). O destaque dado ao corpo possibilitou-lhe também descrever as especificidades do mundo das mulheres Guarani, assim como manifestar as vulnerabilidades que, histórica e estruturalmente, sofrem os corpos indígenas femininos. Nesse trabalho, deu prosseguimento às reflexões anteriores sobre os conflitos existentes em torno da “educação tradicional guarani” e do projeto de educação levado a cabo pelo Estado, apontando os processos de violência que ela própria sofreu por causa da imposição da língua portuguesa e das normas escolares.

Sandra Benites vem chamando atenção para os conhecimentos das mulheres Guarani, visto que os estudos antropológicos que se dedicaram ao seu povo – por exemplo, Curt Nimuendajú (1883-1945), León Cadogan (1899-1973), Egon Schaden (1913-1991), Bartomeu Melià (1932-2019) e Pierre Clastres (1934-1977) – estabeleceram maior interlocução com homens indígenas. Ao trazer as perspectivas das mulheres, sobretudo as de sua avó e as de sua mãe, as quais eram renomadas parteiras (mitã mbojahu ha), Benites estimula uma versão da história de Ore Ypy Rã (“Nosso Início”) com enfoque na trajetória de Nhandesy (“Nossa Mãe”), negligenciada pelas narrativas majoritariamente registradas por homens brancos, que se concentraram em Nhanderu (“Nosso Pai”) e nos gêmeos Kurahy (Sol) e Jasy (Lua).

A autora, figura central no chamado feminismo indígena, sustenta que as questões que tratam do território, do ativismo político, da língua guarani, da saúde, do modo Guarani de conceber o mundo e das narrativas míticas devem partir das produções e conhecimentos das próprias mulheres indígenas para que assim seja possível estabelecer compreensões mais justas e diversas a respeito dos mundos desses povos. O seu nome soma-se aos das intelectuais indígenas Joziléia Daniza Kaingang, Rosi Waikhon, Braulina Baniwa, Naine Terena, Creuza Prumkwyj Krahô, Célia Xakriabá, dentre tantas outras. Doutoranda em antropologia social no Museu Nacional desde 2018, em 2019, Sandra Benites foi contratada como curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo, tornando-se a primeira curadora indígena atuante em um museu de arte do Brasil.

Como citar este verbete:
ANDRADE NETO, Alberto Luiz de & SOUSA, Alexsander Brandão Carvalho de. 2021. "Sandra Benites". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/sandra-benites

ISSN: 2676-038X (online)

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B
data de publicação
14/12/2021
autoria

Alberto Luiz de Andrade Neto e Alexsander Brandão Carvalho de Sousa

bibliografia

BENITES, Sandra, Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ. Fundamento da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015

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BENITES, Sandra, Viver na língua Guarani Nhandewa (Mulher falando). Dissertação de Mestrado, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Antropologia Social, Rio de Janeiro, 2018

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