conceito
Indivíduo – Émile Durkheim

A ideia de indivíduo é pouco lembrada como fonte de teorização do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), comumente conhecido por fundamentar a noção de sociedade. No entanto, o conceito de indivíduo foi analisado por ele desde sua tese de doutorado, Da divisão do trabalho social (1893); nesta obra, demonstra a tendência progressiva da divisão do trabalho, que resulta no advento da consciência individual. É nesse sentido que afirma não ser o indivíduo um dado natural, mas um fato tardio na história, e produto da sociedade. Alguns estudiosos da obra de Durkheim, como William Watts Miller, fundador do British Centre for Durkeimian Studies da Universidade de Oxford, sugerem ser a relação entre coesão social e autonomia individual a problemática de fundo da sociologia do autor desde a obra de 1893, na qual a demonstração da autonomia progressiva do indivíduo acarreta o desenvolvimento do racionalismo e da ciência, alinhando-se ainda aos valores morais da Terceira República francesa (1870-1940), como a democracia representativa e os direitos do homem e do cidadão.

Gustave Caillebotte, “Homem jovem à sua janela”, 1876. Óleo sobre tela. The J. Paul Getty Museum, Los Angeles.

A ideia de indivíduo para Durkheim é distinta das concepções forjadas pela economia política clássica e pelas correntes utilitaristas do final do século XIX, a exemplo de Herbert Spencer (1820-1903) e do economista Gustave Molinari (1819-1912), que postulavam ser a sociedade o resultado da troca mercantil entre indivíduos guiados por interesses materiais. Tais acepções baseavam-se no argumento de que o indivíduo fundava a sociedade, e não o inverso. Contra essa premissa Durkheim escreve Da divisão do trabalho social, analisando um objeto da economia para demonstrar como a divisão do trabalho é um fato social, quer dizer, haveria condicionantes sociais responsáveis pela criação de vínculos entre as diferentes funções desempenhadas em sociedade, não sendo estas condicionadas por interesses individuais. Ao demonstrar a ação imperiosa da sociedade, o sociólogo apresenta outra noção de indivíduo, que atua como “ideal moral” e força agregadora nas sociedades modernas, designadas como “orgânicas”. Nas ditas sociedades “simples” ou “mecânicas”, por sua vez, a consciência coletiva possuiria força imperativa, e o indivíduo não estaria apartado da consciência coletiva. A imagem do sistema inorgânico que guia a interpretação mostra-se uma analogia eficaz para a apresentação da tese: estamos diante de um sistema no qual suas partes são semelhantes, ao contrário do sistema orgânico (o organismo), onde as partes são dessemelhantes e cada órgão tem sua função e autonomia.

A emergência da divisão do trabalho em uma sociedade composta por partes variadas e na qual os indivíduos se especializam - responsáveis por tarefas distintas, seja na produção dos artefatos ou nos ramos da ciência - engendraria uma autonomização da consciência individual em relação à consciência coletiva. Nesse contexto, a consciência dos sujeitos difere do ponto de vista do conteúdo, e o que se mostra comum é a qualidade mesma de “indivíduo”. Ao longo do processo de ampliação e complexificação das sociedades, a consciência coletiva (comum) se enfraquece, o que leva o sociólogo a perguntar-se: como a sociedade se mantém diante do progressivo enfraquecimento da consciência coletiva, que a constitui, e da emergência do indivíduo, que seria aparentemente o seu princípio antagônico?

Em textos posteriores, Durkheim elabora a noção de indivíduo lançando sobre ela novos ângulos e dimensões. Em “L’individualisme et les intellectuels” (1898), apresenta uma noção de indivíduo vinculada à ideia de dignidade humana, que não se baseia em traços individuais, mas em um sentido impessoal de humanidade; dessa concepção de indivíduo emanaria a sacralidade. Em outros termos, o racionalismo que marca o pensamento do autor e sua concepção de Estado laico não descarta o sagrado, ao contrário. Se o conteúdo da religião (deuses e crenças) não deve reger a moralidade, a forma do vínculo religioso - que apela a um valor sagrado, superior ao indivíduo - define a forma por excelência do vínculo social. É nesse sentido que Durkheim fala da “religião do indivíduo” como vital para a coesão das sociedades modernas.

Gustave Caillebotte, "Rua de Paris, tempo de chuva", 1877. Óleo sobre tela. The Art Institute of Chicago.

Em “Détermination du fait moral” (1906) e “Le dualisme de la nature humaine et ses conditions sociale” (1914), ele afirma a dupla natureza do ser humano: uma que concebe “as coisas” em função de si próprio, e outra que as concebe a partir de fins que lhe ultrapassam. Tal premissa ancora o argumento de que o fato moral é constituído por dois aspectos: o dever (obrigatório) e o bem (ideal sagrado). O dever refere-se à autoridade de tipo especial que as regras morais inspiram, consistindo em um sistema de prescrições que se impõe ao indivíduo, o constrange e age sobre ele. O bem, por sua vez, corresponde ao sentimento de realização do ato moral que vai além da própria constituição do indivíduo, e que por isso é sentido como ato grandioso, que inspira sua efetivação. Por essa razão, dirá o autor, o ato moral não institui os sentimentos de obrigação e dever sem que estejam acompanhados do sentimento de desejo (bem).

Em L’éducation morale (1902-1903) Durkheim alega que a sociedade moderna carece de valor moral, de um ideal compatível com a nova estrutura social que estava se formando, marcada pela especialização e individualização das tarefas. Somente um ideal e um valor comum (bem) poderiam manter um espírito de disciplina (dever), que é o sentimento de resignação diante de algo superior. Nas sociedades modernas, a consciência moral rejeita a servidão e busca autonomia, o que leva o autor a questionar as possibilidades de manutenção da harmonia em contexto de crescente individualismo. Em resposta a essa aparente contradição, afirma que razão e autonomia individual coexistem com autoridade e dever; ou seja, o estudo científico da moral mostra a importância de um valor sagrado, fundamental para a coesão social, e ao qual se deve a servidão. A autoridade não é incompatível com o racionalismo e o individualismo, argumentara Durkheim em “L’individualisme et les intellectuels”.

É possível encontrar ecos da análise de Durkheim sobre o indivíduo em “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’” (1938), de Marcel Mauss (1872-1950), seu sobrinho e colaborador no L’Année Sociologique. O esforço de Mauss, nesta análise, é destituir o “Eu” e o “indivíduo” de sua condição transcendental, demonstrando que sua força moral é histórica e sobretudo social. A partir do século XX, a antropologia - Marilyn Strathern (1941- ), Bruno Latour (1947-2022), Roy Wagner (1938-2018), entre outros - produziu críticas à noção de sociedade, em especial aquela de base durkheimiana. Tais críticas tenderam a deixar de lado a centralidade da noção de indivíduo para o sociólogo francês, cuja compreensão é indissociável do conceito de sociedade. No Brasil, sociólogos como Raquel Weiss, Alexandre Braga Massela, Márcio de Oliveira, Marcia Consolim, José Benevides Queiroz, entre outros, foram responsáveis pela renovação dos estudos sobre o autor, com a formação, em 2012, do Centro Brasileiro de Estudos Durkheiminanos, procurando questionar leituras estabelecidas pelo cânone, e tentando pensar além da ideia do fato social como fato coercitivo, exterior e anterior ao indivíduo. A tradução do artigo “Individualismo e os intelectuais”, promovida por este Centro, localiza-o como fundamental para a sociologia de Durkheim, pois sintetiza ideias formuladas desde sua tese de doutorado, anunciando estudos desenvolvidos posteriormente em As formas elementares da vida religiosa (1912). A coleção Biblioteca Durkeimiana, publicada pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), cujos volumes vêm sendo coordenados por historiadores, sociólogos e antropólogos, é mais uma evidência das leituras contemporâneas do autor e de seus colaboradores.

Como citar este verbete:
GOUVEIA, Francisco das Águas Borges X. de. “Indivíduo - Émile Durkheim”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/individuo-durkheim

ISSN: 2676-038X (online)

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I
data de publicação
23/02/2025
autoria

Francisco das Águas Borges X. de Gouveia

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