Que relações são essas por meio das quais uma mulher se torna uma mulher oprimida? Com essa pergunta em mente e com o objetivo de buscar uma explicação para a origem da opressão às mulheres, a antropóloga e militante feminista estadunidense Gayle Rubin (1949-) apontou, em 1975, a existência de um “sistema sexo-gênero”, que ela define como “os arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana”. O ensaio em que apresenta o conceito, O tráfico de mulheres, notas sobre a economia política do sexo (1975), é um dos trabalhos precursores dos estudos sobre gênero e sexualidade. Usando o termo gênero pela primeira vez em um texto de teoria antropológica, a autora faz uma leitura a contrapelo de obras de Karl Marx (1818-1883), Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e Sigmund Freud (1856-1939).
A publicação do ensaio de Rubin, que integrou a coletânea Toward an anthropology of women (1975) editada por Rayna Reiter (1946-), foi peça fundamental na emergência de uma antropologia feminista estadunidense, dando prosseguimento às contribuições da coletânea Woman, culture and society (1974), organizada por Michelle Rosaldo (1944-1981). Todas essas reflexões foram marcadas pela cena política do início da década 1970 nos Estados Unidos, com a segunda onda do feminismo, a luta contra a guerra do Vietnã, a contracultura e os movimentos por direitos civis. A inspiração principal para o ensaio de Rubin surgiu em um curso sobre economia tribal ministrado pelo antropólogo Marshall Sahlins (1930-2021) na Universidade de Michigan. Nessa que foi sua primeira experiência na antropologia, a autora relata, em entrevista concedida à filósofa Judith Butler (1956-), ter se encantado pela riqueza da literatura etnográfica. Nesse período, a partir das leituras de As Estruturas elementares do parentesco (1949) de Lévi-Strauss e de um artigo de Louis Althusser (1918-1990) sobre Freud e Jacques Lacan (1901-1981) na New Left Review, Rubin se deu conta de que era possível estabelecer relações entre todas essas abordagens.
Para a autora, os sistemas de parentesco não dizem respeito a parentes biológicos, mas são sistemas de categorias e de estatutos: formas empíricas e observáveis do sistema sexo-gênero. Em As Estruturas elementares do parentesco (1949), Lévi-Strauss observa ser o parentesco a imposição de uma organização cultural sobre a procriação biológica; a matriz dessa organização, aponta o autor, encontra-se no tabu do incesto e na troca de mulheres entre os homens. Apoiada na ideia levistraussiana de troca de mulheres – que reforça os argumentos da então nascente antropologia feminista de que a opressão das mulheres estaria assentada em sistemas sociais e não na biologia – Rubin desenvolve seu argumento principal. Se parentesco é organização e confere poder, e se a troca de mulheres cria uma rede de relacionamentos que constitui a estrutura de parentesco, aos homens é conferido o poder de constituir o laço social. A troca de mulheres, afirma no ensaio de 1975, “é uma percepção profunda de um sistema no qual as mulheres não possuem plenos direitos sobre si mesmas”; para que esse sistema funcione bem, é preferível que a sexualidade feminina não corresponda aos seus desejos, mas aos de outros. Amparada na defesa de que o gênero é uma “divisão de sexos imposta socialmente”, e ainda dialogando com Lévi-Strauss, dessa vez com A família (1965), Rubin parte da ideia de que a divisão sexual do trabalho nada mais é do que um dispositivo para instituir um estado recíproco de dependência entre os sexos. Conclui, então, que a organização social do sexo é baseada no gênero, na heterossexualidade compulsória e na imposição de restrições à sexualidade feminina.
O tráfico de mulheres se debruça ainda sobre a relação entre as estruturas sociais e as psíquicas. Gayle Rubin vê o parentesco como a “culturalização” da sexualidade biológica e a psicanálise como uma descrição da transformação da sexualidade biológica pela cultura. Nesse sentido, interpreta os ensaios sobre feminilidade de Freud como o relato de como o indivíduo, desde que nasce, é psicologicamente preparado para viver em meio à opressão. Associando Lévi-Strauss e Freud em função do que julga serem as potências e as limitações das teorias desses autores, propõe uma terceira perspectiva: a do sistema sexo-gênero. A fase edípica corresponde ao momento em que a criança aprende as regras sexuais incutidas nos termos relativos aos parentes (pai e mãe), compreende esse sistema de normas e o seu lugar nele; é nessa fase que se dá a divisão dos sexos, pressuposto para o funcionamento dos sistemas de parentesco. Desse modo, desde criança, o indivíduo tem sua sexualidade, sua libido e sua identidade de gênero “organizadas em conformidade com as regras da cultura que a domestica”. Rubin argumenta que o conjunto de regras que rege os sistemas de parentesco gera a heterossexualidade compulsória. A crise de Édipo consiste, portanto, na assimilação dessas regras e tabus, na instituição do desejo heterossexual. E tanto o complexo de Édipo quanto o parentesco atribuem disparidades radicais entre os direitos dos meninos/homens e das meninas/mulheres. Conclui que o feminismo deve se empenhar na defesa de uma revolução no sistema de parentesco. Uma visão utópica, dirá ela mais tarde, em conversa com Butler.
Quase uma década depois, a autora repensa o sistema sexo-gênero proposto em O tráfico de mulheres. Em Pensando o sexo (1984) - ensaio no qual problematiza categorias hierárquicas de estratificação sexual, apontando as dimensões políticas da vida erótica - explica que, nos anos 1970, gênero e desejo sexual pareciam modalidades entrelaçadas do mesmo processo social. Essa perspectiva, ainda que possa mostrar-se adequada para olhar às organizações tribais, não o é para tratar da sexualidade nas sociedades industriais ocidentais. Se opondo à grande parte do pensamento feminista que trata a sexualidade como derivação do gênero, Rubin defende – diferentemente do que afirmou em O tráfico de mulheres – a importância de separar analiticamente gênero e sexualidade. Em 1984, insatisfeita com a forma com a qual o feminismo lidava com as práticas sexuais (principalmente as não convencionais), em um contexto de leis de repressão ao homossexualismo, e inspirada por A história da sexualidade (1976) de Michel Foucault (1926-1984), propõe, ao lado da crítica feminista à hierarquia de gênero, uma teoria radical do sexo.
As formulações de Rubin encontram enorme eco nos estudos de antropologia, de gênero e de sexualidade no Brasil e no mundo. Seus ensaios foram o ponto de partida para uma série de importantes produções, entre as quais o Is kinship always already heterosexual? (2002) de Judith Butler. Questões como a distinção entre sexo e gênero, o pressuposto da heterossexualidade como lógica subjacente dos sistemas de parentesco, críticas às visões binárias das sexualidades e a relação entre a antropologia e as construções das subjetividades são algumas das reflexões para as quais os escritos de Rubin são centrais.
Como citar este verbete:
MONCAU, Gabriela. “Sistema sexo-gênero - Gayle Rubin”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2018. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/sistema-sexo-genero-gayle-rubin
ISSN: 2676-038X (online)
Gabriela Moncau
RUBIN, Gayle & BUTLER, Judith, “Sexual traffic”, Differences: A Journal of Feminist Culture Studies, vol. 6, nº 2-3, 1994, p. 62-99 (Trad. Bras. Cadernos Pagu, n º 21, Campinas, 2003, p.157-209)
RUBIN, Gayle, “The trouble with trafficking: afterthoughts on ‘The traffic in women’” In: Deviations: A Gayle Rubin reader, London, Duke University Press, Durham & London, 2011
RUBIN, Gayle, “The traffic in women: notes on the political economy of sex” In: Rayna Reiter (org), Toward an anthropology of women. New York, Monthly View Press, 1975 (Trad. Bras. Jamille Pinheiro Dias. In: Políticas do sexo, São Paulo, Ubu, 2017)
RUBIN, Gayle, “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality” In: Carole S. Vance (org), Pleasure and danger: exploring female sexuality, Boston, Routledge & Kegan Paul, 1984 (Trad. Bras. Jamille Pinheiro Dias. In: Políticas do sexo. São Paulo, Ubu, 2017)