Subordinação universal das mulheres é uma noção forjada pela antropóloga norte-americana e professora da Universidade da Califórnia, Sherry Ortner (1941-) no artigo “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?” (1974), publicado na coletânea A mulher, a cultura e a sociedade (1974), organizado pelas antropólogas Michelle Rosaldo (1944-1981) e Louise Lamphere (1940-). Nele, a autora realiza um debate conceitual que busca explicar a universalidade da subordinação das mulheres por meio de um olhar avesso a interpretações biologizantes, como as que consideram haver questões de ordem genética que explicariam a dominação masculina. A autora ampara o seu argumento na observação das relações de gênero em diferentes culturas (ideologias, esquemas simbólicos e estruturas sociais), mostrando as formas de exclusão das mulheres ou os modos como elas terminam em posições sociais inferiores. Pretende, com isso, responder a certa expectativa feminista de que a antropologia poderia dar respostas mais tranquilizadoras, ao ser capaz de indicar que as mulheres não seriam subordinadas em todos os lugares, e que haveria sociedades igualitárias.
Para compreender o caráter universal da subordinação das mulheres, a antropóloga se debruça sobre três níveis de explicação: a fisiologia feminina e suas funções; o papel social atribuído às mulheres e a sua estrutura psíquica. Em relação à fisiologia, corrobora as ideias da filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), que em O segundo sexo (1949) discorre sobre a maneira como o corpo feminino, por se relacionar à função natural da reprodução, parece condenar as mulheres a esta tarefa, enquanto os homens poderiam exercer outras funções. Nesse sentido, a mulher tenderia a estar mais próxima da natureza; o homem, de seu lado, estaria (mesmo inconscientemente) ligado à cultura.
A associação do papel social feminino à esfera doméstica, por sua vez, é compreendida como uma limitação de certas situações, sobretudo quando as mulheres têm filhos, nutrem e cuidam dos bebês. Ortner defende que a esfera doméstica é inferior à esfera pública, por ser mais próxima à natureza e representar interesses particulares que se oporiam a interesses sociais, mais universais. Tal argumento encontra-se apoiado na leitura que realiza de Estruturas elementares do parentesco (1949), de Claude Lévi-Strauss (1908-2009); segundo ela, o antropólogo oporia natureza e cultura, assim como unidade doméstica (a família biológica encarregada da reprodução e socialização da prole) e “entidade pública”, isto é a sociedade, entendida como “estrutura dominadora de relações e alianças”.
Finalmente, ao discutir a estrutura psíquica das mulheres, a autora baseia-se no artigo “Estrutura familiar e personalidade feminina” (1974) da psicóloga e socióloga norte-americana Nancy Chodorow (1944 -), publicado na mesma coletânea de Rosaldo e Lamphere. Para Chodorow, em virtude de formas de socialização costumeiras - decorrentes, por exemplo, da responsabilidade feminina pelos cuidados com a primeira infância - seria possível inferir semelhanças na estrutura psíquica das mulheres em todas as culturas; neste sentido, a personalidade feminina também estaria mais próxima da natureza.
As teses de Sherry Ortner, que encontram eco nas ideias das organizadoras e de outras autoras presentes em A mulher, a cultura e a sociedade (1974), foram acusadas de “universalistas” e “etnocêntricas” pelas antropólogas britânicas Marilyn Strathern (1941-) e Carol MacCormack (1933-1997) em Nature, culture and gender (1980). Esta obra contesta pressupostos assumidos por Ortner, afirmando que as distinções entre homens e mulheres não estariam necessariamente associadas à cultura e à natureza e que, se as diferenças entre os domínios existem, elas variam de uma sociedade a outra. A antropóloga norte-americana Eleanor Burke Leacock (1922-1987) também se opôs às teses de Ortner no livro Mitos da dominação masculina: uma coletânea de artigos sobre as mulheres numa perspectiva transcultural (1981), argumentando que haveria sociedades igualitárias, como os Innu [Montagnais-Naskapi] do Canadá, e que a noção de uma natureza feminina oposta e inferior à cultura seria recente e de matriz europeia.
Após mais de vinte anos da publicação e considerando as críticas recebidas, Sherry Ortner revisita a noção de subordinação universal das mulheres, publicando suas reflexões no capítulo “So, is female to male as nature is to culture?”, no livro Making gender (1996). A autora admite haver generalizado indicadores de superioridade masculina, que levariam a supor a dominação cultural dos homens; pondera que, se tal dominação se verifica em diversos contextos, seria mais coerente pensá-la como resultado de uma interação complexa entre dinâmicas de poder, arranjos sociais e atributos corporais, como o tamanho físico superior dos homens e a maior força masculina. Afirma ainda ter passado a compreender as culturas como mais contraditórias e heterogêneas do que considerava. Especificamente em relação à oposição entre natureza e cultura, Ortner diz que não se trata de compreendê-la como um objeto empírico a ser estudado pela etnografia, mas de entendê-la como uma “estrutura generalizada”; de seu ponto de vista, as estruturas mostram-se “questões existenciais”, ou até mesmo “enigmas que a humanidade deve enfrentar”. E por estarem na fronteira entre natureza e cultura através do corpo, as relações de gênero seriam interessantes para empreender estas reflexões.
A despeito das críticas que recebeu, o estudo de Sherry Ortner foi importante para a construção de uma antropologia feminista nas décadas de 1970 e 1980, tanto no cenário internacional como no Brasil. A autora sistematizou estudos sobre as relações entre homens e mulheres em diferentes sociedades e culturas, analisando dados etnográficos diversos e trazendo para os estudos de gênero reflexões sobre o etnocentrismo e o binarismo.
Como citar este verbete:
MARTINELLI, Fernanda. "Subordinação universal das mulheres - Sherry Ortner". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo, 2024. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/subordinacao-ortner
ISSN: 2676-038X (online)
Fernanda Martinelli
BEAUVOIR, Simone de, Le deuxième sexe, Paris, Gallimard, 1949 (Trad. Bras. Sérgio Millet. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição)
CHODOROW, Nancy, “Estrutura familiar e personalidade feminina” In: ROSALDO, Michelle Zimbalist & LAMPHERE, Louise (org.), Women, culture and society: a theoretical overview. Stanford, Stanford University Press, 1974 (Trad. Bras. Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979)
LEACOCK, Eleanor Burke, Myths of male dominance: collected articles on women cross-culturally. New York and London, Monthly Review Press, 1981 (Trad. Bras. Susana Vasconcelos Jimenez. São Paulo, Instituto Lukács, 2019)
LÉVI-STRAUSS, Claude, Les strutuctures élémentaires de la parenté. Paris, Presses Universitaires de France, 1949 (Trad. Bras. Mariano Ferreira. Petrópolis, Vozes, 2012, 5ª edição).
MACCORMACK, Carol P. & STRATHERN, Marilyn (eds.), Nature, culture and gender. Cambridge, Cambridge University Press, 1980
ORTNER, Sherry B., “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?” In: ROSALDO, Michelle Zimbalist & LAMPHERE, Louise (eds.), Women, culture and society: a theoretical overview. Stanford, Stanford University Press, 1974 (Trad. Bras. Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979)
ORTNER, Sherry B., “So, is female to male as nature is to culture?” In: ORTNER, Sherry B., Making gender: the politics and erotics of culture, Boston, Beacon Press, 1996
ROSALDO, Michelle Zimbalist & LAMPHERE, Louise (eds.). Women, culture and society: a theoretical overview. Stanford, Stanford University Press, 1974 (Trad. Bras. Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979)