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Nascimento virgem

“Nascimento virgem” é um conceito formulado por antropólogos do fim do século XIX e início do XX para designar a dissociação entre cópula e gravidez, operada por alguns povos da Austrália e das Ilhas Trobriand, na costa oriental da Nova Guiné. Ao longo do século XX, o tema se desenvolve em controvérsias em torno do significado de tal dissociação: se ela denotaria, ou não, “ignorância” da paternidade fisiológica. Foi nas décadas de 1960 e 1970 que o embate encontrou o seu ápice, naquela que ficou conhecida como a "polêmica do nascimento virgem", culminando na revisão crítica feita a partir de teorias feministas nas décadas seguintes.

Bronisław Malinowski (1884-1942) trata do nascimento virgem nas Ilhas Trobriand, por exemplo, em A vida sexual dos selvagens (1929). Aí, o antropólogo britânico-polonês relata que, para os trobriandeses, cada nascimento se origina da morte de outrem: os espíritos dos mortos (baloma) vivem na Ilha de Tuma, a noroeste do arquipélago, até que se cansem de ser baloma e decidam retornar à terra. Quando isso ocorre, transformam-se em criança-espírito (waiwaia-a) pelo contato com a água salobra do mar. Para a gestação, as crianças-espírito podem entrar diretamente no corpo de uma mulher que está se banhando, serem conduzidas em um balde de água até a casa de sua futura mãe ou serem depositadas no corpo materno por outro baloma (em geral feminino e matrilinear). Portanto, a gravidez não figura como resultante do intercurso sexual; este aparece, no máximo, como condição para abertura do canal vaginal que possibilita a entrada da criança.

Diante do que entendeu ser a “ignorância” da paternidade fisiológica entre os Trobriandeses, Malinowski ressalta o que denomina “paternidade sociológica”: pai, para os nativos, é o marido da mãe; as crianças-espírito só podem nascer de mulheres casadas. Este homem, em decorrência de obrigações contraídas pelo casamento, molda e nutre a criança por meio de relações sexuais durante a gravidez, segurando-a e alimentando-a após o nascimento. A partir disso, a criança passa a parecer-se fisicamente com o pai, e um laço emocional forte se constitui entre eles.

Malinowski, “O manto da gravidez”, The Sexual Life of Savages, 1929, figura 42. Em sua primeira gravidez, os parentes da mãe presenteiam-na com vestes cerimoniais, como o manto de fibra. Segundo Malinowski, a magia ocupa posição central na produção das vestes: mulheres espalham pétalas de lírio branco sobre elas e sopram palavras que evocam um pássaro de plumagem branca. A palidez é produzida também no rosto da mulher.

Entre as décadas de 1960 e 1970 tem lugar a “polêmica do nascimento virgem”, protagonizada pelo antropólogo inglês Edmund Leach (1910-1989), aluno de Malinowski, e pelo norte-americano Melford Spiro (1920-2014), cujo principal motivo de discórdia é a tese que atribui aos nativos “ignorância” do papel biológico masculino na procriação – antes de Malinowski, o médico, antropólogo e administrador colonial britânico Walter Edmund Roth (1861-1933), em 1904, e o antropólogo escocês James George Frazer (1854-1941), em 1914, por exemplo, sustentariam o argumento. Trata-se, em última instância, de uma divergência metodológica sobre como atribuir significados às evidências etnográficas.

Leach, em artigo de 1966, defende que as descrições nativas sobre a reprodução denotam não “reais” apreensões do problema, mas um dogma. Afirmar a “ignorância” da paternidade fisiológica significaria, para ele, distinguir o selvagem do antropólogo, tratando o primeiro como “ignorante”, em contraposição ao “raciocínio lógico” do segundo. Propondo uma análise de inspiração estruturalista, o autor demonstra como o mito do nascimento virgem cristão não pressupõe desconhecimento de fatos reprodutivos; a narrativa do nascimento virgem, tanto no Ocidente (em sua versão cristã), como para os povos Australianos apresentaria dogmas que afirmam certas relações sociais formais. Em resposta a Leach datada de 1968, Spiro defende que a “ignorância” da paternidade fisiológica não seria uma inferência antropológica, mas um achado empírico. Segundo ele, nenhum dos autores que a sustentaram entendiam-na em contraposição ao raciocínio lógico, mas como desconhecimento. Spiro contesta também a comparação, estabelecida por Leach, entre nascimentos comuns na Austrália e nas Ilhas Trobriand e o nascimento de Jesus Cristo, que, por ser extraordinário, implica o conhecimento da paternidade fisiológica. Argumenta ainda que, ao tratar a paternidade sociológica como uma escolha, Leach substitui o significado cognitivo do nascimento virgem por suas implicações sociológicas. Para Spiro, a paternidade sociológica não seria uma escolha, mas a causa não intencional da “ignorância” da paternidade fisiológica, cujo fundamento seria psicanalítico: a negação do pai fisiológico em decorrência de um conflito edípico.

Sandro Botticelli, "Anunciação de Cestello", 1489-90. Têmpera sobre madeira, 150 x 156cm. Galeria Uffizi, Florença.

Vinte anos depois, a antropóloga norte-americana Carol Delaney (1940-) escreve um artigo sobre o nascimento virgem que prescinde do debate em torno da propalada “ignorância”, produzindo uma inversão: aponta que as suposições dos antropólogos por trás de suas teorias sobre o nascimento virgem denotariam a ignorância deles sobre a questão da paternidade. A autora defende que a paternidade, longe de ser uma entidade sobre a qual podemos constatar presença ou ausência, seria um conceito cujo significado deriva de uma relação com outros conceitos e crenças, dos quais não pode ser abstraído. Isso implica que as teorias reprodutivas australiana e trobriandesa não ignoram a paternidade fisiológica, mas que não se valem do conceito de paternidade. A procriação seria, assim, uma construção social, de forma que seus elementos biofísicos, no Ocidente, serviriam à significação social de gênero, autoridade e parentesco. A ideia de “ignorância” da paternidade fisiológica seria, portanto, fruto de uma noção antropológica e ocidental de procriação, considerada um fato biológico natural e universal.

Em conferência de 1995, Marilyn Strathern (1941-) segue o caminho aberto por Delaney, desdobrando a questão. Pensando como o modelo analítico antropológico sobre as culturas não ocidentais é informado pelo pensamento euro-americano, ela propõe que, para este, a relação sexual não possui uma conexão simplesmente técnica com a procriação, mas define uma relação conceitual: reproduz a parentalidade como resultado de uma união em que as partes se distinguem por gênero. As polêmicas em torno de novas tecnologias reprodutivas (NTR), massificadas a partir dos anos 1980, ocupam lugar central na conferência de Strathern, pois permitem entrever um problema implícito para o pensamento euro-americano no tratamento da polêmica do nascimento virgem: a impossibilidade de conceber que mulheres tivessem filhos sem intercurso sexual, apenas em virtude da implantação do embrião. O nascimento virgem trobriandês e australiano colocaria, assim, uma questão epistemológica que não tem a ver com a paternidade ou com a sua ausência, mas com a maternidade: trata-se não da falta de pai, mas da maternidade sem sexo.

O conceito “nascimento virgem”, inicialmente um achado etnográfico, se mostrou profícuo para uma discussão metodológica, possibilitando um movimento de reflexividade por parte da Antropologia ao colocar em evidência a teoria de procriação ocidental.

Como citar este verbete:
MIGUEZ, Lúcia Mendes. “Nascimento virgem”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2022. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/nascimento-virgem

ISSN: 2676-038X (online)

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bibliography

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