obra
Cultures of relatedness

Cultures of Relatedness (2000) é uma coletânea organizada e introduzida pela antropóloga britânica Janet Carsten, composta por oito ensaios assinados por Charles Stafford, Sharon Hutchinson, Helen Lambert, Rita Astuti, Karen Middleton, Barbara Bodenhorn, Jeanette Edwards e Marilyn Strathern (1941-). Resultado de uma conferência sobre fronteiras e identidades realizada na Universidade de Edimburgo em 1996, o livro é uma resposta à Critique of the Study of Kinship (1984) em que o antropólogo norte-americano David Schneider (1918-1995) condena o método genealógico que, segundo ele, estaria baseado na suposição ocidental de preeminência da biologia na criação de laços de parentesco, concluindo ser este um conceito que não existe em outras sociedades, senão nas ocidentais. Com o objetivo de refutar as abordagens biologizantes do parentesco, os ensaios de Cultures of Relatedness buscam referências teóricas e metodológicas nos estudos de gênero e na antropologia feminista – por exemplo, nos trabalhos de Jane Collier e Sylvia Yanagisako, e nos de Judith Butler (1956-) –, bem como na obra de Bruno Latour (1947-), para defender que o parentesco é também construído.

A proposta de Janet Carsten é incorporar à reflexão a noção de relatedness, termo que dá relevância metodológica às dimensões do cotidiano (comensalidade, troca de nomes, amizade etc.) na produção de laços de parentesco. Os artigos do livro analisam materiais etnográficos de contextos distintos - chineses, Nuer, indianos, Vezo, Karembola, Iñupiat e os habitantes de Alltown, norte da Inglaterra - buscando entender o que significa “estar aparentado” e quais símbolos (além das substâncias biológicas) criam vínculos profundos e duradouros associados à esfera de parentes. A perspectiva defendida no volume, conhecida como o novo parentesco, utilizou-se do pensamento de Schneider para pensar a concepção de parentes em função de outras dimensões, diferentes do elo biológico. O esforço para desnaturalizar o lugar da mulher (mãe/esposa); para contestar as opressões de gênero relacionadas ao caráter natural da procriação e das diferenças fisiológicas; além da tentativa de compreender fenômenos como a adoção transnacional e o casamento homo-afetivo levou esse grupo de pensadoras a problematizar a dicotomia natureza/cultura, enfatizando a permeabilidade de suas fronteiras. Mary Bouquet, autora do capítulo de encerramento do volume, defende que a cisão biológico/social é reflexo da transição da antropologia das coleções de museus, ou de gabinete, para o método genealógico. Segundo ela, os mapas genealógicos forneceram uma análise racional às exposições em museus sobre os povos do mundo, além disso, representaram um tipo de “visão pura” sobre as sociedades e permitiram a separação entre ‘natural’ e ‘cultural’ nos estudos do parentesco. O questionamento dessa cisão (natural-cultural) é a questão chave dos trabalhos reunidos na obra cuja proposta é uma “nova antropologia comparativa” que coteja formas de conhecimento ocidentais e não-ocidentais para mostrar como elas operam afinidades e diferenças entre pessoas nas diversas maneiras de produzir, manter e desfazer “relacionalidades”.

A incorporação da noção de relatedness às discussões sobre o parentesco é considerada fundamental para que os estudos escapem da oposição biológico/social, mas Carsten pondera que pensar as “relacionalidades” afastadas da dimensão biológica, arrisca colocar outro problema: quaisquer relações poderiam ser vistas, no limite, como relações de parentesco. Esta foi justamente a porta de entrada para diversas críticas feitas à ideia de relatedness. Uma corrente que enfatiza o caráter biológico do parentesco, por exemplo Warren Shapiro e Maurice Godelier (1934-), a acusou de menosprezar a importância dos aspectos reprodutivos, dando relevância às construções sociais e culturais. A Etnologia americanista, especificamente Eduardo Viveiros de Castro (1951-) criticou o novo parentesco por considerar que ele carrega o traço eurocêntrico da dicotomia dado/construído, específica do parentesco ocidental, apontando o caráter construído do parentesco para qualquer sociedade. A partir dessas críticas, a ideia de relatedness passou a ser conhecida como parentesco construtivista.

Imagem da família com o casal no meio, Silverdalen, Suécia. Entre 1890 e 1910. Nordiska Museet. Wikimedia Commons. Imagem em domínio público.

Atento a esses debates, Marshall Sahlins (1930-) produziu o conceito de mutuality of being que, assim como a noção de “relacionalidade”, considera os aspectos cotidianos, como comensalidade e convivência, na definição do parentesco. Ele define o parentesco como implicações mútuas construídas por meio de relações sociais. A existência coletiva compartilhada entre as pessoas e que as faz pertencer umas às outras pode ser, nos seus termos, chamada de parentesco. Nesse sentido, ele também amplia o significado do conceito se aproximando do mesmo problema posto pela ideia de relatedness: o risco do vácuo analítico, já que qualquer relação poderia ser definida como parentesco. A despeito dos limites apontados, estudos desenvolvidos pela antropologia brasileira, interessados na noção de família e suas conexões com a política, migração, gênero, ciência e memória, vêm utilizando e desdobrando as reflexões presentes em Cultures of relatedness.

Como citar este verbete:
MURILLO, Aline Lopes. “Cultures of relatedness”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/cultures-relatedness>

ISSN: 2676-038X (online)

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data de publicação
12/12/2016
autoria

Aline Lopes Murillo

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