O livro Diante de Gaia - oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (2015) compila oito textos organizados a partir de um ciclo de seis conferências proferidas por Bruno Latour (1947-2022) nas Gifford Lectures, em Edimburgo, em 2013. O tema central dessas palestras é o Novo Regime Climático, e nelas o autor afirma não estar o mundo apenas atravessando uma crise ecológica – já que a ideia de crise carrega a esperança de uma possível melhora – mas sim uma profunda reconfiguração ambiental, política e epistemológica. Com esse conceito, ele identifica ressonâncias com sua estabelecida pesquisa sobre a antropologia da modernidade e das ciências (com as tensões culturais dela resultantes), em linha com suas outras obras, como Jamais fomos modernos (1994) e Investigação sobre os modos de existência (2019). O percurso do livro abre, assim, uma série de questionamentos existenciais quanto ao projeto modernizador, expondo suas diferentes facetas, e debate outras formas de habitar o mundo.
O volume está organizado em blocos temáticos. O primeiro é composto por duas conferências, “Sobre a instabilidade da (noção de) natureza” e “Como não (des)animar a natureza”, referente à ideia da “potência de agir” (agency), tratada como ferramenta epistemológica multidisciplinar e capaz de articular domínios diferentes. O segundo apresenta os chamados “protagonistas” da questão, Gaia e o Antropoceno, com as conferências “Gaia: uma figura (enfim profana) da natureza” e “O Antropoceno e a destruição (da imagem) do globo”, nas quais o autor dialoga com os filósofos Michel Serres (1930-2019) e Peter Sloterdjik (1947-), além do cientista James Lovelock (1919-2022). Enquanto o Antropoceno refere-se à proposta de uma nova era geológica transformada pelas atividades humanas, tal como formulada por Eugene F. Stoermer e Paul J. Crutzen, Gaia refere-se à hipótese, elaborada por Lovelock e pela microbiologista Lynn Margulis (1938-2011), de que as interações entre os seres vivos e a Terra formam um sistema sinérgico e autorregulado. Nas conferências “Como convocar os diferentes povos (da natureza)?” e “Como (não) terminar com o fim dos tempos?”, Latour discute “quem são os povos” em disputa pela possibilidade de existir na Terra, abordando temas relativos à teologia, como escatologia e cosmologia. Finalmente, nas duas últimas, “Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz” (na qual realiza uma releitura do jurista alemão Carl Schmidt), e “Como governar os territórios (naturais) em luta?” traz a questão geopolítica e, portanto, territorial, dessa disputa.
O tema da “potência de agir” é abordado a partir da oposição localizada no cerne do pensamento da Modernidade, entre a Natureza, considerada pano de fundo objetivo da vida, e a noção de Cultura; binômio também abordado em escritos de Tim Ingold (1948-) e Donna Haraway (1944-), por exemplo em seu Manifesto ciborgue (2009). Latour anuncia a oposição ao mesmo tempo que indica sua inviabilidade, uma vez que qualquer tentativa de definir os termos separadamente demandaria uma explicação que os hibridizasse. Na verdade, a distinção entre Natureza e Cultura é interpretada por ele como ramificação de duas categorias de sujeitos (humanos e não humanos) no interior da Modernidade, que expressam uma segunda oposição: àqueles a quem é permitido a “potência de agir” sobre a Natureza (sujeitos) e a quem essa faculdade subjetiva é negada (objetos).
Na Modernidade, a Cultura é entendida como aquilo que retira o sujeito de sua condição de Natureza; esta, por sua vez, é concebida como cenário de fundo ou dado. Tal separação moderna entre sujeitos e objetos, segundo ele, causou uma defasagem em ferramentas epistemológicas capazes de constatar os diversos esquemas de relações e interconexões dinâmicas características da vida. Como consequência, moldou-se, historicamente, um ideal de civilização desatento aos impactos de um modo de vida pretensamente isolado de vínculos ecossistêmicos, além de incessantemente lucrativo, na biosfera terrestre. O autor buscará no conceito de Gaia um referente conceitual (uma espécie de contrarrevolução à cosmologia dos modernos) pelo qual se pode identificar e descrever as “sucessivas invenções dos viventes que acabaram transformando completamente as condições físico-químicas da terra geológica inicial” – suas palavras no prefácio à edição brasileira da obra.
A urgência em rever a separação entre Natureza e Cultura (e, portanto, entre sujeitos e objetos) é motivada pela crise ambiental aguda, que o autor entende ser a consequência última do modo de vida moderno, entendido como desligado do mundo ao redor. O Antropoceno é discutido de maneira semelhante pelo historiador indiano Dipesh Chakrabarty (1948-) em suas “quatro teses” (2009) nas quais indica a profundidade dos impactos das atividades humanas no planeta desde o advento da Modernidade. Para enfrentar a gravidade do Antropoceno, Latour entra em um debate existencial sobre a possibilidade real do “fim” do mundo construído pela Modernidade. A crise climática e seus desdobramentos impõem uma escolha entre sua manutenção – seja por inação ou pela crença em saídas utópicas tecnológicas – ou a guinada incerta em direção a uma outra forma de estar no mundo com condições habitáveis para todos os “terrestres”. Essa última escolha, indica o autor, nos posiciona necessariamente diante de Gaia, escancarando a irreversibilidade das complexas e emaranhadas relações de interdependência entre os seres viventes em prol da composição mutável das condições da vida.
A dificuldade em abandonar o modo de vida moderno reside na crença da linearidade do progresso civilizacional, defende o autor. Tal crença estabelece uma perspectiva temporal específica, na qual o futuro é sempre melhor que passado. Regredindo no tempo, chega-se ao momento da suposta distinção entre Natureza e Cultura, quando a segunda retira o sujeito da primeira. O estado humano “pré-civilizacional” no qual essa separação não existiria, torna-se, no pensamento moderno, o verdadeiro apocalipse, já superado pela civilização, sendo a Modernidade sua terra prometida. O papel dessa crença, espécie de teologia política natural que Latour enfrenta no livro, é explorado também por Giorgio Agamben (1942-) em Profanações (2007) e Betti Marenko em “Algorithm magic: Simondon and Techno-animism” (2019), e em certas reflexões de Fréderic Gros (1965-) em Desobedecer (2018); à diferença de Latour, esses autores discutem o modo de vida “capitalista”, nomeando-o como tal ao invés de designá-lo como moderno. O antropólogo Alf Hornborg, de seu lado, critica reflexões como as de Latour por discutirem o Antropoceno sem enfrentar o problema da economia política internacional e dos sistemas capitalistas globais de exploração.
Em Diante de Gaia, Latour demonstra sua preocupação com o desafio de pensar outros mundos possíveis, o que o leva a mobilizar novas categorias epistemológicas para a interpretação da realidade; para isso, dialoga com reflexões das filósofas Isabelle Stengers (1949-), no livro No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima (2008), e Donna Haraway – que irá aprofundá-las posteriormente em Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno (2016). O cerne da discussão sobre esses outros mundos possíveis é a figura dos “terrestres” (do inglês earthbound, cujo sufixo bound indica a ideia de laço, relação, vínculo), referencial para a reformulação cosmopolítica dos modernos, que obriga a assumir a responsabilidade de agir diante dos desafios – o que Latour entende como “estar diante de Gaia” – e romper com as barreiras responsáveis pela chegada do Antropoceno. Na última conferência do livro, o autor apresenta um experimento pedagógico de simulação de uma conferência internacional, feita por seus alunos em Sciences Po, Paris, onde a representação política é estendida aos não humanos, considerados em suas múltiplas potências de agir e territórios – semelhante ao Parlamento das Coisas proposto por ele em Jamais fomos modernos (1994). O experimento aproxima-se das recentes inovações políticas de reconhecimento da personalidade jurídica de não humanos, como rios e montanhas, em alguns territórios indígenas.
O autor desenvolveria essas teses no livro Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno (2020), no qual aprofunda a questão da negação contemporânea das mudanças climáticas e seu enfrentamento. Suas propostas são discutidas no Brasil por autores como a filósofa Alyne Costa e o antropólogo Stelio Marras, e no livro Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins (2014), da filósofa Déborah Danowski (1978-) e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1951-), que defendem a potência de cosmovisões originárias da América Latina como referenciais epistêmicos para essa tarefa de ruptura.
Como citar este verbete:
FELLIPIN DOS SANTOS, Guilherme & COSTA, Bruna Mayer. “Diante de Gaia”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/obra/diante-de-gaia
ISSN: 2676-038X (online)
Guilherme Fellipin dos Santos e Bruna Mayer Costa
AGAMBEN, Giorgio, Profanazinoni, Milão, Nottetempo, 2005 (Trad. Bras. Selvino J. Assmann, São Paulo, Boitempo, 2015)
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COSTA, Alyne, Guerra e paz no Antropoceno: uma análise da crise ecológica segunda a obra de Bruno Latour, Dissertação de mestrado, Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014
DANOWSKI, Deborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis, Cultura e Barbárie, ISA, 2014
GROS Frédéric, Désobéir, Paris, Flammarion, 2017 (Trad. Bras. Célia Euvaldo, São Paulo, Ubu Editora, 2018)
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LATOUR, Bruno, Enquête sur les modes d'existence: une anthropologie des modernes, Paris, La Découverte, 2012 (Trad. Bras. Alexandre Fernandez. Petrópolis, Ed. Vozes, 2019)
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