Mules and men (1935) é o segundo livro publicado por Zora Neale Hurston (1891-1960), antropóloga e escritora norte-americana, nascida em Notasulga, Alabama, contemporânea de Ruth Benedict (1887-1948) e aluna de Franz Boas (1858-1942). Resultado de uma pesquisa de campo realizada na Flórida e na cidade de New Orleans na década de 1920, e seguindo o método etnográfico do culturalismo norte-americano, o livro busca descrever diversos traços culturais dos black folks (ou dos Negroes, como a literatura antropológica se referia à época), incluindo folclore, músicas, vida social, cultura material e técnicas. Ainda que publicado como produção acadêmica, o livro foi recebido como obra literária e comparado a Uncle Remus (1881), romance de Joel Chandler Harris. O romance, um sucesso à época sobretudo entre leitores brancos, apresenta um narrador-personagem negro que conta nostalgicamente, em um estilo de escrita que emula a linguagem de comunidades negras do sul, histórias sobre a época da escravidão - razões pelas quais a comparação com o trabalho de Hurston, ela própria oriunda do sul pós-emancipação e que buscava inovar na apresentação da linguagem da região, era feito. A comparação incomodou Hurston, primeiro porque ela já havia criticado o romance e, segundo, porque Mules and men era o resultado de trabalho etnográfico, distante dos estereótipos de Harris sobre o folclore afro-americano.
A etnografia publicada na forma de um livro dividido em duas partes, glossário e quatro apêndices, é uma rara reunião de folclore e de práticas mágicas e de medicina popular dos negros norte-americanos, conhecidas como hoodoo. A primeira parte é dedicada à coleta de lies [mentiras], maneira como os black folks se referiam às histórias que circulavam entre eles. Nos três primeiros capítulos do segmento inicial, Hurston transporta o leitor para o dia a dia dos negros em Eatonville. Por ter crescido na cidade e ser ela própria uma mulher negra há muito engajada na luta contra o racismo, consegue participar das atividades dos seus interlocutores, sejam festas ou rodas de conversa, com a ajuda das quais logra coletar uma grande quantidade de histórias, algumas sobre o tempo da escravidão, outras sobre a origem das coisas e dos animais, e ainda outras sobre acontecimentos fantásticos que teriam ocorrido com seus próprios interlocutores. Todas essas histórias são recheadas de humor, já que, segundo a antropóloga, o riso seria uma das formas dos Negroes resistirem aos avanços do branco - uma das originalidades da interpretação.
Do quarto ao décimo capítulo, Hurston conta as lies coletadas entre os trabalhadores de uma empresa madeireira em Loughman e uma mina em Pierce. Sobre esse contexto, ela descreve, entre um folclore e outro, as relações de poder e de gênero, bem como as brincadeiras e as brigas que testemunhou. As músicas coletadas são inteiramente transcritas no apêndice 1 do livro, inclusive com a partitura e a análise de algumas delas. Os sete capítulos da segunda parte são dedicados ao hoodoo; seis deles dizem respeito às pesquisas em New Orleans e apenas um sobre Eatonville, Flórida. Em cada capítulo, ela descreve as práticas de um doutor de hoodoo que acompanhou como pupila. Para tanto, passa por várias cerimônias de iniciação, o que a permite descrever cenários, materiais, cheiros e falas, próprias aos rituais. Depois de iniciada, participa de alguns trabalhos com esses doutores, que apresenta detalhadamente: desde o pedido do cliente; o valor cobrado; a parafernália (os materiais utilizados); o local onde o trabalho deveria ser feito; a sequência de passos de cada ritual e o resultado. A riqueza desses materiais aparece na apresentação de cada trabalho e suas finalidades nos apêndices 2, 3 e 4, como, por exemplo, a utilização de raízes com fins medicinais; Hurston descreve como doenças, cujas causas não eram identificadas pelos médicos, só podiam ser curadas com essas raízes, já que resultados de trabalhos feitos contra a pessoa.
Ainda que produzido no âmbito da antropologia norte-americana, Mules and men é marcado por um estilo inovador. O livro é escrito em forma de “contação” de histórias [storytelling] fiel ao estilo narrativo de seus interlocutores, destacando a sonoridade da fala por meio da grafia das palavras tal como pronunciadas pelos black folks. Essa particularidade expressa a familiaridade de Hurston com a cultura negra da qual ela própria fazia parte e a sua decisão de registrar as inovações da escrita fonética. Mules and men não é apenas uma análise precisa do folclore, mas performatiza o estilo da contação de histórias que marcava a disseminação do folclore e caracterizava a sociabilidade das comunidades negras do sul. Pode ser descrito, portanto, como a contação de uma história sobre uma antropóloga que, em meio a festas, rodas de conversa e trabalhos de hoodoo, pede para seus conhecidos de infância lhe contarem histórias. Antecipa, assim, em muitas décadas a narrativa dialógica como prática corrente em descrições etnográficas, que ganhará vulto na chamada antropologia pós-moderna.
Na esteira da escritora e militante feminista Alice Walker (1944-), autores como Barbara Johnson (1947-2009) e John D. Dorst apontam Mules and men como um marco da prática etnográfica nativa, e afirmam que o livro pode ser lido tanto como um comentário sobre as premissas que sustentam a ideologia burguesa quanto um comentário sobre as tentativas da antropologia da época de fazer afirmações sobre as diferenças entre “nós” e “eles”. Mais recentemente, a intelectual chicana Maria Eugenia Cotera (1964-) afirma que o livro pode ser visto como uma obra etnográfica de resistência, na qual Hurston assume as táticas dos negros norte-americanos em suas relações com os brancos, especialmente no contexto das leis segregacionistas de Jim Crow do sul do país. Afinal, ao contar sobre folclore e hoodoo, realiza uma crítica sutil à antropologia que a formou e a seus pressupostos sobre objetividade e desejo de conhecer o Outro. O redescobrimento da obra a partir da década de 1970 permitiu que diversas autoras norte-americanas negras, como Maya Angelou (1928-2014), Toni Cade (1939-1985), Gayl Jones (1949-), Gloria Naylor (1950-2016), e a própria Alice Walker, buscassem em Hurston inspiração para suas produções. Ao afirmar o lugar da mulher negra e condenar a tentativa de escritores brancos de escrever a história dos negros, Hurston foi uma influência não só para essas escritoras, mas também, e mais amplamente, para o movimento negro dos Estados Unidos.
Como citar este verbete:
MOREIRA, André Guilherme. “Mules and men”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2020. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/obra/mules-and-men
ISSN: 2676-038X (online)
André Guilherme Moreira
ANGELOU, Maya, “Foreword” In: Dust tracks on a road (1942), New York, Harper Collins Publisher, 2010
COTERA, María Eugenia, Native speakers: Ella Deloria, Zora Neale Hurston, Jovita González, and the poetics of culture, Austin, University of Texas Press, 2008
DORST, John, “Rereading Mules and men: toward the death of the etnographer”, Cultural Anthropology, Vol, 2, Issue 3, Aug. 1987, p. 305-318
GATES, Henry Louis, Jr., “Afterword” In: Dust tracks on a road (1942), New York, HarperCollins Publisher, 2010
HURSTON, Zora Neale, “Hoodoo in America”, The Journal of American Folklore, Vol. 44, No 174, 1931, p. 317-417
JOHNSON, Barbara, “Threshold of difference: structures of Address in Zora Neale Hurston”, Critical Inquiry, Vol 12, n. 1, 1985, p. 278-289
WALKER, Alice, “In Search of Zora Neale Hurston” (1975), Ms. Magazine, p. 74-89 (Trad. Bras. Victória Barbosa e Ana Gretel Echazú Böschemeier, Ayé: Revista de Antropologia, Número especial Fire!!! Textos escolhidos de Zora Neale Hurston, 2021, p. 109-134)