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Franz Boas

O antropólogo alemão Franz Boas (1858-1943) é figura central para o desenvolvimento da antropologia como disciplina. Sua defesa do relativismo cultural e o estabelecimento de uma definição original de cultura lançariam as bases teóricas do que ficaria conhecido como antropologia cultural. Dentre suas contribuições destacam-se a separação dos conceitos de raça e cultura, a distinção das ideias de cultura e civilização (o que o leva a descartar hierarquizações entre povos “com” ou “sem cultura”) e a institucionalização da etnologia como ciência. Radicado nos Estados Unidos desde 1887, ele foi responsável pela orientação e formação de uma geração de antropólogos nesse país, e sua influência na disciplina é notável até os dias de hoje. Dentre seus orientandos da Universidade de Columbia em Nova York, onde lecionou por várias décadas, é possível citar Alfred Kroeber (1876-1960), Edward Sapir (1884-1939), Ella Cara Delloria (1889-1971)Irving Goldman (1911-2002)Margaret Mead (1901-1978), Robert Lowie (1883-1957), Ruth Benedict (1887-1948) e Zora Neale Hurston (1891-1960). Sua obra marcaria antropólogos que desenvolveriam, em direções diversas, estudos sobre a noção de cultura, como Bronisław Malinowski (1884 -1942) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Franz Boas com vestimenta Inuit de caribu, c. 1885-86. American Philosophical Society.

Com formação em matemática, física e geografia, Franz Boas se aproxima da antropologia em 1883-1884, quando realiza uma expedição aos Inuit (então conhecidos como esquimós) da ilha de Baffin, Canadá. Suas observações geográficas foram publicadas no livro Baffin-Land (1885) e suas anotações propriamente etnográficas em The central Eskimo (1888). Em 1885 passou a trabalhar no Museu Etnológico de Berlim, momento em que realizou pesquisa com os Bella-Coola da costa noroeste americana, que resultou na publicação de artigo intitulado "Os índios Bella-Coola do Capitão Jacobsen" (1886). Torna-se professor da Universidade de Columbia em 1889, onde funda e dirige por mais de três décadas o Departamento de Antropologia. Durante o período que reside nos Estados Unidos passa a dedicar-se cada vez mais à antropologia, como indica o seu artigo “On alternating sounds” (1889), determinante para lançar as bases da definição moderna de cultura. Seguindo a tradição de Wilhelm von Humboldt (1769-1859), Boas considerava a linguagem como o verdadeiro fundamento da unidade dos povos, porém línguas e culturas não deveriam ser apenas comparadas e hierarquizadas no tempo e na história, como propunha a antropologia do século XIX; segundo ele, a ideia de sons alternantes pode ser observada em qualquer língua, não indicando nenhuma forma de “primitivismo linguístico”. Diferentes ambientes culturais resultam em "percepções diferenciais” do ouvinte, o que significa defender o caráter cultural do som e de sua percepção.

Boas é contratado, em  1896, como curador das coleções etnológicas do Museu de História de Natural de Nova York, o que possibilitou o financiamento da Jesup North Pacific Expedition, ampla pesquisa realizada entre 1897 e 1902 com o objetivo de investigar relações entre povos e culturas da costa leste da Sibéria e da costa noroeste do Pacífico norte-americano. Durante a preparação da expedição, escreveria “As limitações do método comparativo da antropologia” (1896), artigo que se opõe à forma de comparação até então praticada. A crítica de Boas dirige-se à análise dedutiva utilizada pelos antropólogos evolucionistas e à comparação de traços culturais isolados, propondo o que denomina de “método histórico", metodologia de pesquisa indutiva e empírica, que estabelece, como condição para a busca de leis gerais, o estudo detalhado de culturas em territórios circunscritos. Tal concepção é tributária da matriz romântica alemã, na qual Boas se formou; ampara-se na filosofia alemã de Johann Gottfried von Herder (1744-1803), nas ideias de Rudolf Virchow (1821-1902) e de Adolf Bastian (1826-1905), fundadores da primeira Sociedade Antropológica Alemã. O método comparativo proposto por ele no artigo de 1896 liga-se às discussões museológicas da época - aos modos de classificar e apresentar diferentes culturas - com as quais Boas estava envolvido. Sua perspectiva culturalista e histórica refuta também modelos explicativos que classificam povos e línguas de acordo com sua distância de centros de origem supostamente puros; em seu modelo difusionista, os traços culturais são interpretados como possuindo origens contingentes, e adquirindo significados nos novos contextos em que se inscrevem. Suas proposições relacionam-se ainda ao contexto político alemão pós-reunificação, marcado por debates sobre nacionalismos e identidades.

A mente do ser humano primitivo (1911) é considerado o marco mais importante da antropologia desde a publicação de Cultura primitiva (1871) de Edward B. Tylor (1832-1917). Neste livro Boas se contrapõe a dois princípios fundamentais da antropologia do século XIX: aquele que determina que o desenvolvimento da cultura estaria subordinado a fatores biológicos e o que postula corresponder a cada cultura uma determinada etapa histórica no interior de um processo evolutivo comum a todas elas. No mesmo ano, na Introdução ao primeiro volume do Handbook of American Indian Languages, estabelece novas bases para o estudo linguístico dos povos indígenas norte-americanos, ancorado em análises gramaticais detalhadas e circunstanciadas, amparadas pela etnografia. Arte primitiva (1927), por sua vez, introduz a ideia de relativismo cultural, baseada no reconhecimento de que vemos o mundo sob a perspectiva de nossa cultura; em uma expressão que se tornou famosa, Boas disse estarmos acorrentados aos "grilhões da tradição", sugerindo, assim, ao antropólogo a relativização de suas próprias noções quando da observação de outras culturas. Na conferência “Raça e progresso”, pronunciada em 15 de junho de 1931 como presidente da American Association for the Advancement of Science (AAAS), realiza uma crítica contundente às teorias racistas que dominavam a sociedade norte-americana e boa parte do ambiente acadêmico da época; tal conferência mostra sua participação na cena pública e política, atuando em causas em prol da igualdade racial. Dentre as várias coletâneas que reúnem seus artigos e principais publicações do autor, destaca-se Race, language, and culture (1940), conjunto de sessenta e três artigos, críticas e pequenos estudos por ele organizados, que insistem sobre o estudo de contextos culturais particulares, de modo que as diferentes culturas possam ser entendidas por seus próprios parâmetros.

Franz Boas em seu escritório em Grantwood, Nova Jersey, 1915. American Philosophical Society.

Boas aposenta-se em 1936, após lecionar na Universidade de Columbia por trinta e sete anos. Além de diversos livros publicados ao longo da vida, liderou a criação da American Anthropological Association (AAA), em 1902. Viria a falecer, de ataque cardíaco, em 21 de dezembro de 1942, em um almoço no Faculty Club de Columbia, no qual estavam presentes Ruth Benedict, Ralph Linton, e outros colegas da Universidade de Columbia. A importância e repercussão de sua obra pode ser aferida de diversos modos. Em A formação da antropologia americana, 1883-1911: Franz Boas (1974) - traduzido para o português em 2004 - o historiador George Stocking Jr. (1928-2013) discute os princípios básicos da antropologia boasiana, a partir da análise de escritos do próprio Boas, o que faz da obra uma referência para a compreensão do autor; Stocking também inclui no oitavo volume da coleção History of Anthropology o artigo de Boas “The study of Geography” (1887), mais uma contribuição ao estabelecimento da obra do antropólogo. No centenário do nascimento de Boas, Walter Goldschmidt (1903-2010) publica The Anthropology of Franz Boas: Essays on the centennial of his birth (1958). A coletânea, organizada sob os auspícios da revista American Anthropologist, consiste em contribuições de seus antigos alunos, dentre os quais o arqueólogo e antropólogo mexicano Manuel Gamio (1883-1960) e o linguista Roman Jakobson (1896-1982).

No Brasil, a importância de Franz Boas é também digna de nota. No prefácio da primeira edição de Casa Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre (1900-1987) atribui a originalidade de seu ponto de vista aos estudos feitos na Universidade de Columbia sob a orientação de Franz Boas; afirma ter sido a antropologia de Boas a responsável por revelar a diferença entre raça e cultura, base do livro de 1933 e dos subsequentes. A tradução e reunião para fins didáticos de artigos de Boas em português (a cargo do antropólogo Celso Castro, em 2004), é mais uma evidência do seu uso nos cursos de antropologia no país.

Como citar este verbete:
VILELA, Pedro Ravasio; TORAL, Maria Luiza. “Franz Boas”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2025. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/franz-boas

ISSN: 2676-038X (online)

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