conceito
Desenho - Tim Ingold

O desenho, segundo o antropólogo britânico Tim Ingold (1948- ) é um método e um recurso descritivo para a antropologia; na qualidade de instrumento de compreensão da vida social, mostra-se uma prática de inscrição em que observação e descrição se encontram associadas. Longe de ser um modo de ilustrar o texto escrito, o desenho é conceito e prática, além de possuir papel fundamental nas proposições do autor sobre a formatação de uma “antropologia gráfica”, ou “antropografia” (2015), que – inspirada nas exposições da antropóloga portuguesa Ana Isabel Afonso e do antropólogo português Manuel João Ramos – toma o desenho como modo de fazer da antropologia e dissolve a suposta dicotomia entre texto e imagem. As discussões de Ingold sobre o desenho são desenvolvidas ao longo de diversas obras, como Lines: a brief history (2007), Redrawing Anthropology: materials, movements, lines (2011), Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (2011) e Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture (2013).

Fundamentais em nossas vidas cotidianas – seja ao caminharmos ou ao falarmos –, os desenhos, segundo Ingold, foram subestimados pelo pensamento ocidental contemporâneo. Na antropologia, embora há muito incorporados como forma de registro, diálogo e investigação, foram esquecidos em determinado momento, diferente do que ocorreu com a escrita e até mesmo com a fotografia. Ao retomar o debate sobre essa prática específica, o autor a reconhece como um modo de produção de conhecimento potente e legítimo, reforçando-o como parte integrante dos fazeres antropológicos e desenvolvendo, a partir do gesto de desenhar, reflexões sobre as abordagens e os fazeres da própria disciplina.

Além de caminho metodológico e forma expressiva, Ingold defende ser o desenho uma forma de “redesenhar a antropologia”, uma metáfora para a compreensão da vida social, que transcorreria através de linhas que se emaranham, tal como num desenho. Ao realizar essa expansão interpretativa, o autor mobiliza diversos conceitos trabalhados ao longo de suas produções, por exemplo o de “linhas”, explorado detidamente em Lines: a brief history (2007), e em Redrawing Anthropology – onde dialoga diretamente com o artista russo radicado na França Wassily Kandinsky (1866-1944) e com a psicanalista e artista britânica Marion Milner (1900-1988) –, questionando os modos de representação da vida social e entendendo as linhas como uma forma de sua própria expressão e investigação. Em Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (2011) sugere que, além de ser o desenho um de seus recursos fundamentais, ele permite abranger diversas formas de delineamento ou modos de fazer-linha, seja a da escrita feita à mão ou a de um esboço. Também chamada de “antropografia”, essa forma de praticar antropologia opera por meio de três procedimentos: “seguir os materiais” e ver como eles se tornam “coisas”; “copiar os gestos”, o que significa educar nossa atenção e aprender com as coisas enquanto elas estão acontecendo; “desenhar as linhas”, ou seja, descrever e registrar as coisas e os movimentos ao mesmo tempo que são observados e vividos, guiando esse processo de observação pelo desenho. Ao contrário de certas abordagens antropológicas, segundo as quais aquele/a que observa e participa do mundo deve se retirar para descrevê-lo, uma antropologia baseada no desenho poderia descrever e observar a uma só vez, já que associa o/a observador/a e os movimentos do mundo. A postura de retirada, criticada pelo autor, estaria associada a uma separação dicotômica entre texto e imagem, segundo a qual a descrição seria apenas composição verbal. 

Vincent van Gogh, "Campo de trigo, Saint-Rémy de Provence", 1889. Tinta sobre papel, 466 x 615 mm. The Morgan Library & Museum, Nova York. Imagem em domínio público.

Ao observar a subida de salmões por uma cachoeira em Redrawing Anthropology (2011), o antropólogo desenha uma linha descrevendo o que viu. Esta seria, ele afirma na introdução da obra, a vida em si, pois ela contém, em seu gesto e forma, movimento, observação e descrição. Quando observamos o movimento do traçado “com” a linha (ao invés de olharmos “para” ela), somos levados aos gestos de descrição de Ingold sobre o movimento dos salmões na cachoeira, ao seu modo de fazer antropologia e de ver o mundo. Tal como a vida é um processo inacabado, sempre em andamento, a prática de desenhar, indica ele, não busca totalidades ou completudes. Inspirado no historiador da arte anglo-americano Norman Bryson (1949-), ele entende que, ao contrário da pintura que almejaria um sentido de conclusão, o desenho deixa rastros, busca caminhos na sua relação com o papel, não pretendendo o preenchimento de uma superfície. De forma semelhante, a vida segue desenhando linhas a partir de suas relações com um mundo em constante movimento. Uma das tarefas da antropologia gráfica seria então seguir essas movimentações, observando-as e descrevendo-as enquanto elas ocorrem. Na medida em que o desenho deixa inscrições tanto no ambiente ao redor e na imaginação, Ingold o entende não como projeção sobre suportes e superfícies, mas como uma forma de caminhar, gesto contínuo que liga a mente e o mundo em processos imprevistos. Nesse sentido, ao desenhar, vinculamos nossas próprias linhas às linhas da vida e às texturas do mundo. 

As reflexões de Ingold sobre o desenho vem reverberando na antropologia. Podemos mencionar trabalhos de Manuel João Ramos, como “Ceci n’est pas un dessin: notes on the production and sharing of fieldwork sketches” (2019), e o artigo “Drawing with a câmera? Ethnographic film and transformative anthropology”, em que as antropólogas Anna Grimshaw e Amanda Ravetz associam as discussões sobre o desenho a outros modos de fazer antropologia com imagens (nos filmes etnográficos, por exemplo). No Brasil, observa-se uma produção crescente e significativa acerca do desenho na antropologia, indicam os trabalhos de Aina Azevedo – com um ensaio desenhado escrito em coautoria com Sara Asu Schroer, “Weathering: a graphic essay” (2016) e outro em coautoria com Manuel João Ramos, “Drawing Close – on visual engagements in fieldwork, drawing workshops and the anthropological imagination” (2016). O dossiê “Antropologia e Desenho” (2016) da revista Cadernos de Arte e Antropologia, com introdução de Karina Kuschnir, e a “I Mostra de Desenho Etnográfico” da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), ocorrida na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) em 2020, são outras evidências das crescentes produções acerca da prática de desenhar na antropologia, muitas com inspirações retiradas dos escritos de Ingold.

Como citar este verbete:
SILVA, Jeferson Carvalho da. 2022. "Desenho - Tim Ingold". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/desenho-tim-ingold

ISSN: 2676-038X (online)

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D
data de publicação
13/07/2022
autoria

Jeferson Carvalho da Silva

bibliografia

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GRIMSHAW, Anna & RAVETZ, Amanda, “Drawing with a camera? Ethnographic film and transformative anthropology”, Journal of the Royal Anthropological Institute, (N.S.) 21, 2015, p. 255-275 (Trad. Bras. Tatiana Lotierzo e Luís Felipe Kojima Hirano, GIS - Gesto, Imagem e Som, vol.  6, n. 1, 2021)

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